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O desafio de Ricardo Toscano é o amor maior de John Coltrane

Este artigo tem mais de 3 anos

"A Love Supreme" é a obra insuperável do músico americano, editada em 1964. O saxofonista português presta-lhe homenagem e reinterpreta-a na Culturgest. Antes, explica-nos como e porquê.

Esta terça-feira em formato online, sexta e sábado ao vivo e em septeto, Ricardo Toscano procura "a liberdade de Coltrane"
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Esta terça-feira em formato online, sexta e sábado ao vivo e em septeto, Ricardo Toscano procura "a liberdade de Coltrane"

Vera Marmelo

Esta terça-feira em formato online, sexta e sábado ao vivo e em septeto, Ricardo Toscano procura "a liberdade de Coltrane"

Vera Marmelo

Aconteceu tudo a 9 de dezembro de 1964, em New Jersey. Ao lado de John Coltrane, no saxofone tenor, estavam McCoy Tyner (piano), Jimmy Garrison (baixo) e Elvin Jones (bateria). A Love Supreme guarda alguns dos 33 minutos mais livres que a música já ouviu. Imprescindíveis para a história do jazz. Essenciais na cronologia de todas as coisas musicais. É inevitável continuar a celebrá-los. E é necessário. E a Culturgest — que até havia planeado a coisa para mais cedo este ano — não abdica da festa.

O programa envolvia um espectáculo de dança de Salva Sanchis e de Anne Teresa de Keersmaeker que pensava o disco como um acesso dramatúrgico para corpos em palco e que foi, entretanto, cancelado por lesão de um dos seus intérpretes. Manteve-se, contudo, uma proposta prevista no plano inicial: um convite feito ao saxofonista português Ricardo Toscano para se apropriar desta épica matéria e para lhe dar mais um uso. Momento para vivenciar esta sexta (21h00) e sábado (11h00), ao vivo na Culturgest, em Lisboa. Antes, já esta terça, Toscano reinterpreta os quatro temas que compõem o disco, numa “deambulação” que será transmitida nos canais do YouTube e do Facebook da Culturgest (21h00).

Convém que se perceba que esta não é propriamente uma tarefa inédita na carreira de Ricardo Toscano. O músico já tocou A Love Supreme ao vivo com o seu quarteto — Ricardo Toscano (saxofone tenor), João Pedro Coelho (piano), Romeu Tristão (contrabaixo) e o João Pereira (bateria) — um par de vezes e já perdeu a conta às ocasiões em que o escutou, ao ponto de fazer parte da lista dos discos que mais pôs a rodar na vida, uma lista que, como todos os melómanos sabem, tem ponderação e critério. Hoje, aos 27 anos, de uma coisa Ricardo Toscano está certo: não sabe precisar o momento em que escutou A Love Supreme pela primeira vez, sabe apenas que não estava preparado.

[ouça “A Love Supreme” na íntegra através do YouTube:]

“Devia ser adolescente e não estava nesse sítio de conseguir ouvir e conseguir perceber o que estava ali a acontecer. Acho que o devo ter ouvido quando tinha uns 13, 14 anos, coisa assim. já adorava jazz e já tocava clarinete e saxofone alto, mas não estava sensível a isto, se calhar ainda bem, porque não banalizei a coisa. Mas quando isto bateu… Isto é uma obra-prima, tem quatro andamentos, é como se fosse uma oferta do Coltrane para os deuses e para os espíritos. Depois vim a conhecer melhor a história do disco e a saber a forma como ajudou algumas pessoas, acho que o disco já salvou vidas, pessoas que depois de ouvirem o disco encontraram ali uma nova força. O importante neste objeto não é mesmo só o conteúdo, é a energia que tem, que a música consegue transmitir, o que eles conseguiram criar naquele momento. É inacreditável”, comenta.

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Em 1964, John Coltrane era já um dos corpulentos nomes do jazz internacional, tendo, antes de chegar aos discos como frontman em 1957 (um homónimo com selo da Prestige), passado por formações diversas e distintas (quintetos, septetos, quartetos) de gente tão importante como Dizzy Gillespie, Miles Davis, Thelonious Monk, Paul Chambers, entre outros. Mas 1957 é também o ano em que nos dá o maravilhoso Blue Train, pela editora Blue Note. E aí o jogo mudou. Talvez não imediatamente, mas foi ganhando outras curvas e profundezas. Coltrane deixou de ser o saxofonista ao serviço de outras lendas, para virar central, para não parar de editar discos, para não parar de tentar chegar ao céu.

O álcool, a heroína e um ou outro desgosto amoroso — tridente aparentemente infalível de qualquer pirâmide fundadora de individualidade — atrapalharam as contas, ao ponto de, também em 1957, quase ter morrido de overdose. Quando chega a A Love Supreme, John Coltrane é outro. Limpo, entregue à devoção e à vontade de ser melhor, de deixar um rasto benigno e que pudesse afectar a comunidade em seu redor, o saxofonista faz esta obra-prima que parece estar acima da música:

“Acho que o importante neste disco e em música desta dimensão, com uma energia destas, é irmos conseguindo desbloquear os nossos ouvidos para ouvir outras coisas que estão ali a acontecer, mas que não é só música, nem notas, é energia, são forças, fios condutores entre os músicos. Não sei pôr em palavras o que significa para mim, mas é uma inspiração para cada vez que agarro no saxofone. Tentar ser. Este álbum representa para mim uma liberdade, uma coragem, uma exposição máxima, uma vulnerabilidade, coisas bonitas”, admite Ricardo Toscano. É como que um objecto que temos em casa num sítio protegido — em podendo com vidro duplo — e a que voltamos em sintomas de dúvida ou teorias por cimentar: “Sim, podes chamar-lhe um Santo Graal, se quiseres”, brinca.

É, portanto, evidente que existe uma dimensão de fé do disco, que não será óbvia ou clara, pelo menos não na hora de a concretizar numa imagem: “Para mim, é muito mais a dimensão espiritual que a religiosa. As pessoas crescem todas, ou quase todas católicas, em Portugal. Mas depois quando crescem e começam a ganhar interesse perante as coisas percebem que se calhar isto é muito mais uma ideia espiritual do que religiosa, se calhar não precisas de chamar nomes concretos a nada disto e se calhar não precisas de carregar a culpa, que é uma coisa bastante católica. Podes estar ligada à força das coisas na mesma.”

Efetivamente, parece existir uma potência qualquer neste objeto particular que não bate certo com os restantes — mesmo aqueles que foram feitos com este quarteto, como Crescent (de 1964) ou Transition (gravado em 65, mas editado apenas em 1970.) Apesar de confessar — “isto pode ser polémico” — que Crescent é o seu disco preferido de Coltrane, Toscano assume que “a matéria-prima do A Love Supreme é muito minimal”: “Se tocássemos só aquilo que ele escreveu isso estaria feito em 30 segundos, ou seja, o que eles fazem no meio é explorar, comunicar. Os outros discos não são assim.”

"Quando ouvi os takes [das gravações que a Culturgest vai transmitir online esta terça-feira] fiquei muito contente com o que fizemos e quem sabe possa sair daí um disco, talvez" (fotografia: Vera Marmelo)

Vera Marmelo

E aqui reside também um peso qualquer da passagem dos tempos. Há uma certa forma de fazer as coisas — neste caso, discos, música,experimentação, trabalho em grupo e no estúdio — que morreu e que não se relaciona facilmente com as novas gerações que hoje consomem e fazem música.

“Quando era puto, não conseguia ouvir bem o Wayne Shorter e hoje em dia é das minhas maiores referências, porque tem um som sujo e tecnicamente é meio sujo, não o troco por nada. E isso é um problema geracional, a geração que veio depois desses músicos, a malta dos anos 70 e 80 aperfeiçoou bastante as coisas, mas não a causa, parece que começaram a tocar com muita maquilhagem e até os discos têm um som muito mais digital, mais certinho”, explica o músico.

Não há, neste campo, como negar a importância de uma mudança que é social e é tecnológica, que rodou o rosto e o fazer das coisas e das pessoas. Algo que Ricardo Toscano lamenta, mas não chora. Gostava que o mundo estivesse mais para ouvir uma canção de jazz com 13 minutos. Mas não está, portanto siga a dança.

À volta de “A Love Supreme”

Além do duplo-concerto a decorrer no próximo fim-de-semana na Culturgest, há ainda outras possibilidades, mais caseiras, mais respeitantes de condicionamentos pandémicos. “À Volta de A Love Supreme” é um concerto online — ou uma série de vídeos disponibilizados, uma vez que não é em direto — que a Culturgest, na pessoa do seu programador musical Pedro Santos, propôs a Ricardo Toscano, para adensar a relação com o disco e para aumentar a profundidade de pensamento sobre o objeto. São quatro vídeos (para cada um dos andamentos do álbum) e foram feitos em duo (à exceção do primeiro andamento, “Acknowledgment”, que foi feito em trio):

“No primeiro andamento sou só eu com duas baterias, do Luís Candeias e do João Pereira, a fazerem-me bullying. Depois, o segundo andamento foi feito só com a bateria do João Pereira. O terceiro fiz em duo com o Romeu Tristão, que é contrabaixista e vai tocar no concerto. E o último fiz com o piano, com o João Pedro Coelho. Tem graça porque gravámos isso tudo seguido, tudo num dia, eles foram chegando e indo embora e eu fiquei a fazer a maratona, de manhã ao fim da tarde. E a verdade é que no momento não me apercebi disso, mas acho que a suite nunca tinha sido feita dessa forma. Quando ouvi os takes fiquei muito contente com o que fizemos e quem sabe possa sair daí um disco, talvez”, conta Toscano.

[um teaser para aquilo que vai poder ver nos canais vídeo da Culturgest, esta terça-feira:]

“Acknowledgment”, “Resolution”, “Pursuance” e “Psalm”. São estes os quatro andamentos e as quatro portas — de entrada e de saída —, os quatro níveis, andares, os quatro “tudo” que compõem A Love Supreme. E não, não são a mesma fruta: “A primeira parte é um acordar, é um processo de autoconsciência, um auto-reconhecimento, é muito introspetivo, tens ali aquele mantra no meio que é o acesso para o transe, tens ali coisas que estão erradas teoricamente, mas que estão super certas porque soam como têm de soar. E isso para mim é logo um incentivo. O groove tribal era uma coisa que não se fazia muito na altura. No segundo andamento, “Resolution”, a melodia dessa zona é como se fosse, para mim, um apontar de dedo perante ti, ao espelho, tudo aquilo que ele toca ali é a colocar em causa, é a questionar-se. Pode ser um disco de terapia, se quiseres. O terceiro andamento é o drive, é a perseguição, é o galope e ao mesmo tempo é meio celebração, a melodia é bastante feliz, é festivo. O quarto andamento é o salmo, ele toca aquelas palavras, é uma oração que ele escreveu e é muito religioso e espiritual, mas nesse salmo diz que esta é toda a sua oferta a Deus. É curioso como, ao mesmo tempo, é um cool down e um clímax. É um clímax para baixo, uma espécie de descanso do guerreiro”, enquadra.

Apesar de já o ter feito em quarteto, o saxofonista nunca o fez em septeto, com um ensemble assim: Ricardo Toscano (saxofone tenor), João Pedro Coelho (piano), Romeu Tristão (contrabaixo), João Pereira (bateria), Luís Candeias (bateria), Bernardo Tinoco (saxofone barítono) e João Almeida (trompetista). E como é que se faz, então?

"Cada vez que ele [Coltrane] toca soa-me só a libertação e isso é o maior objetivo da vida de um músico", diz-nos Ricardo Toscano (fotografia: Vera Marmelo)

Vera Marmelo

“Como é que se toca o A Love Supreme com sete pessoas? Não faço a mínima ideia, vamos descobrir. Pensei logo que se era para ter mais músicos, tínhamos de ter mais bateria, mais percussão. E sei que chamei mais dois instrumentos de sopro para aqueles momentos de transe e todos os momentos onde há assim som, groove, para haver muita massa sonora, volume, força. E estamos todos a precisar de amor, a malta precisa de amor”, avisa.

Para concluir, Toscano volta a Coltrane, à admiração que lhe tem, a propriedades que outros músicos não têm e que lhe são tão particulares. Em suma, viva a honestidade e a transparência e abaixo o academismo clássico: “O que sinto na obra de Coltrane é transparência. É engraçado, porque acho que é dos músicos que já ouvi que deve ter passado mais horas a praticar e é claro que quando o oiço consigo ver esse estudo, mas ao mesmo tempo não me soa nada a isso. Cada vez que ele toca soa-me só a libertação e isso é o maior objetivo da vida de um músico, todos passam muitas horas a tocar e aperfeiçoar a sua arte e ele conseguia não soar a nada disso. É só música, só expressão. E isso vem de concretizações espirituais, é como um estado a que alguns artistas chegam e outros não, não ter necessidade de exibir aquilo que sabes fazer, mas ao mesmo tempo os teus skills estão completamente ao serviço da tua perspetiva. Isso demora muito tempo a construir e são precisos muitos desbloqueios.”

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