Duas semanas depois da morte de Ihor Homeniuk no aeroporto de Lisboa, a embaixadora da Ucrânia em Portugal escreveu ao Ministério Público português exigindo uma investigação àquela morte, que classificou como “um caso flagrante de violação dos direitos humanos“. Na missiva, a diplomata ucraniana acusa o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), na pessoa do agente que comunicou a morte à embaixada, de ter omitido as circunstâncias em que Homeniuk morreu.

O Observador sabe que a carta, assinada pela própria embaixadora ucraniana, Inna Ohnivets, foi enviada no dia 29 de março de 2020 ao Ministério Público — designadamente ao Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa — e classificada como “muito urgente“. Ihor Homeniuk havia morrido no dia 12 de março, nas instalações do SEF no aeroporto de Lisboa, onde foi brutalmente agredido por inspetores da força policial fronteiriça.

Na carta, a embaixadora explica que estava a par do caso de Ihor Homeniuk desde o dia 10 de março. Nesse dia, a representação diplomática ucraniana recebeu um fax, enviado pelo SEF, a dar conta de que as autoridades tinham recusado a entrada do cidadão ucraniano em território português. Trata-se de um procedimento normal numa situação destas.

Como a PJ reconstituiu o homicídio de Ihor a partir das imagens de videovigilância do SEF

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Quatro dias depois, a 14 de março, a embaixada voltou a ser contactada — desta vez, por um inspetor fronteiriço português, que “notificou os agentes consulares” ucranianos “sobre a morte do Sr. Ihor Homeniuk”. Nesta comunicação de 14 de março, diz a embaixadora, as autoridades portuguesas não disseram a verdade à representação ucraniana.

Nada foi informado sobre as suas causas e circunstâncias, apenas a data do óbito do falecido, omitindo, deste modo, a verdade“, acusa Inna Ohnivets na carta enviada ao Ministério Público.

Tinham passado duas semanas sobre aquela notificação formal, que nada dizia sobre as agressões, quando a TVI24 emitiu uma reportagem sobre a morte de Homeniuk. Na reportagem, a estação televisiva dava conta de que os inspetores do SEF eram suspeitos de ter torturado e assassinado o ucraniano. Foi essa reportagem, emitida no dia 29 de março, que alertou a embaixadora: a morte de Ihor Homeniuk, de que tinha conhecimento havia duas semanas, podia ter contornos mais complexos do que aqueles que conhecia.

Nesse mesmo dia, a diplomata escreveu a carta ao Ministério Público, lamentando ter tido conhecimento daquelas suspeitas pela televisão.

O que viram (e contaram à PJ) os primeiros socorristas a chegar junto de Ihor Homeniuk

A embaixadora cita o que viu na reportagem para dizer que Ihor Humeniuk “acabou por ser ‘torturado e barbaramente agredido pelos agentes do SEF’, o que o levou à morte.”

Inna Ohnivets classificou o episódio como “um caso flagrante de violação dos direitos humanos que levou à morte de um cidadão da Ucrânia” e como “uma situação de abuso de autoridade por parte dos representantes da autoridade portuguesa“.

No final da carta, a embaixadora ucraniana lembrou que “garantir e proteger os direitos humanos são as principais tarefas de um Estado” e considerou que “foi violado o principal direito de uma pessoa — direito à vida”. Por isso, pediu ao Ministério Público que “se digne realizar uma investigação imparcial, objetivo e justa do citado caso“. A diplomata solicitou ainda que as autoridades portuguesas informassem a representação ucraniana “sobre o decorrer do processo da investigação e os respetivos resultados”, logo que isso fosse possível.

Se em março Inna Ohnivets assumiu uma posição dura e assertiva, acusando o Estado português de violar os direitos humanos, de abusar da autoridade e de omitir a verdade, o que é certo é que mais recentemente a embaixadora adotou uma postura mais discreta e menos crítica das autoridades portuguesas.

O caso reacendeu-se nas últimas semanas devido às declarações da viúva do cidadão ucraniano, Oksana Homeniuk, em entrevistas recentes a canais de televisão portugueses. A mulher diz que não recebeu sequer as condolências do Estado português e que teve de pagar sozinha os custos associados à trasladação do corpo do marido para a Ucrânia.

O Ministério da Administração Interna confirmou que havia transmitido as condolências à família em abril, através da embaixada da Ucrânia em Portugal; depois do recente reacendimento da polémica, o Governo enviou uma nova carta à família, prometendo uma indemnização.

Na semana passada, porém, a embaixadora ucraniana abandonou uma entrevista quando foi pressionada a responder sobre se as condolências tinham chegado à família em abril. Embora tenha confirmado um encontro com o ministro Eduardo Cabrita em abril, Inna Ohnivets recusou responder se as condolências enviadas à mulher nessa altura vinham da parte do Governo português.

Ex-cônsul ucraniano garante que transmitiu condolências por duas vezes a viúva de Ihor Homeniuk

Já o ex-cônsul da Ucrânia em Portugal, Volodymyr Kamarchuk, garantiu esta semana ter transmitido, não uma, mas duas vezes as condolências do Governo português à viúva de Homeniuk — uma em nome do ministro da Administração Interna, outra em nome do ministro dos Negócios Estrangeiros.

Esta nova abordagem da diplomacia ucraniana, alinhada com o Governo português e procurando evitar comprometer a atuação dos ministros de Portugal, contrasta com as acusações contundentes assinadas pela embaixadora em março.

Embaixada tentou várias vezes obter objetos pessoais de Ihor

Ainda durante o mês de março — e já depois da dura carta enviada pela embaixadora —, a representação diplomática ucraniana manteve-se em contacto com as autoridades portuguesas para facilitar a entrega dos bens pessoais de Ihor Homeniuk à viúva.

Num mensagem enviada por email e por carta no dia 30 de março, o cônsul Volodymyr Kamarchuk pedia ao DIAP de Lisboa, em nome da família do cidadão ucraniano morto pelo SEF, que enviasse rapidamente à embaixada informações sobre como proceder ao levantamento dos objetos pessoais de Homeniuk — para depois serem enviados à família.

“Isto aqui é para ninguém ver”. As 56 horas que levaram à morte de um ucraniano no aeroporto de Lisboa

Seis dias depois, a 6 de abril, o cônsul insistiu no pedido, sublinhando que o repatriamento do corpo aconteceria em breve e que a família precisava dos objetos pessoais de Homeniuk com urgência.

Durante várias semanas, porém, nada foi feito.

Foi preciso uma terceira insistência no dia 27 de abril, desta vez já por um advogado em nome da viúva de Homeniuk, para solicitar os objetos pessoais do ucraniano — que incluíam uma mala de viagem e o anel de casamento. Por esta altura, Ihor Homeniuk já havia sido cremado e a representação diplomática tinha organizado um voo para o repatriamento das cinzas para o dia 2 de maio — motivo pelo qual os bens pessoais do homem deviam ser entregues rapidamente à família.

No dia seguinte, o Ministério Público acedeu finalmente ao pedido e deu indicações para que os objetos de Ihor Homeniuk fossem localizados e entregues, para poderem seguir com o corpo para a Ucrânia.

“Mataram o gajo”. Vários funcionários do SEF trocaram mensagens no Whatsapp sobre a morte do cidadão ucraniano