Título: Rafael Bordalo Pinheiro. De árvore em punho
Autora: Susana Neves
Editores: Câmara Municipal de Lisboa e Museu Bordallo Pinheiro
Design: Inês Sena
Páginas: 160, ilustradas, bilingue
Preço: 25 €

A capa de “Árvore em Punho”, de Susana Neves

Apesar do título inusitado, que parece querer fazer de Rafael Bordallo Pinheiro observador naturalista virtuoso do lápis e do barro, um “revolucionário ecológico” avant la lettre, mas sobretudo evitando assumir que o “ecologismo” é um conservadorismo em todos os sentidos e para todos os efeitos, este novo livro de Susana Neves vem trazer uma faceta até hoje subestimada pelos estudiosos e comentadores do artista, de José-Augusto França a João Medina, de João Paulo Cotrim a Isabel Castanheira e Maria Cambraia Lopes, entre tantos. A iniciativa Lisboa Capital Verde Europeia 2020 acolheu e quis viabilizar com meios adequados uma profunda pesquisa no arquivo do Museu Bordallo Pinheiro, e não só, desenterrando-se por fim uma antiga sugestão à autora pela historiadora da arte Emília Ferreira, actual — e espera-se que continue — directora do MNAC. Ficamos agora a saber que Rafael foi um “arauto activo da arborização, um defensor incansável e quase obsessivo dos jardins, não se coibindo de zumbir feroz e humoristicamente sobre as cabeças de todos os que, por carência mental e cultural, não celebram as árvores e as flores” (p. 41), pretendendo, enfim, que “Portugal como jardim da Europa à beira-mar plantado deixe de ser uma figura de retórica” (O António Maria, Abril de 1880, cit. p. 83).

É quase cruel perceber que entre nós avanços historiográficos nas mais variadas matérias dependem inteiramente de efemérides e recursos financeiros externos de excepção — como aqui sucede —, em vez de participarem duma revisitação contínua e recorrente das coisas portuguesas, ao menos as de notoriedade excepcional, como o génio bordalliano certamente é. Porque apesar de o abundante espólio de Rafael se encontrar à consulta no museu que tem o seu nome, apesar de a agência municipal EGEAC que ele integra dispor de meios avultados, e apesar dos indiscutíveis mérito e zelo dos seus sucessivos directores, como Pedro Bebiano Braga (2010-14), foi preciso esperar por recursos e pretexto exógenos para o que por dentro já devia ter sido feito finalmente se cumprisse. Equipas museológicas muito reduzidas acodem a tarefas urgentes, protelando o que é verdadeiramente importante. Depois, por detrás desta cortina de precaridades irrompem figurões vaidosos do quase nada que fazem, pretendendo conseguir que o que deveria ser corrente passe por fantástico e que a eles tudo se deve. Não era mesmo preciso…

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O livro — esse sim — é extraordinário, e não me refiro apenas ao design de Inês Sena, gentil, limpo e hábil como sempre. A autora, que já dera grandes provas de capacidade de investigação, em temas de botânica, vinicultura e afins, está aqui como gato em depósito de novelos de lã coloridos, para mais manifestamente surpreendida pelo filão que desbravou, e consciente da novidade velha que traz à nossa fruição e empatia. A figuraça de Rafael, ácida e terna ao mesmo tempo, com a sua criatividade inesgotável, a sua facilidade de desenhar ou modelar com precisão de anatomista e “memória fotográfica” (p. 113) fosse o que fosse debaixo do sol, não podia ser melhor objecto de estudo, sobretudo quando ou desde que Susana Neves descobriu que o velho artista tinha pelo mundo das flores e das plantas, dos jardins e dos herbários, uma paixão próxima da sua. A autora é, aliás, particularmente ágil a contextualizar nas substanciais alterações urbanísticas finisseculares lisboetas, e nas intervenções de Ramalho Ortigão e Fialho de Almeida — mas esqueceu-se, diria, de António Arroio e a sua defesa da árvore na cidade —, essa predilecção bordalliana que parecia ter ficado cingida à sua “Botânica Política” ou “Aplicada” (p. 127; figs. pp. 28, 105, 129, 131, 138) e à recorrente representação alegórica de uma zoologia privativa, desde gatos nos auto-retratos a rãs e cegonhas em mosaicos pintados para uma famosa tabacaria do Rossio, peças de caça, abelhas e andorinhas no inesperado lavatório-fonte numa preservada “casa de brasileiro” na Estrada de Benfica, ou macacos em galho ou lagostas, santolas e caracóis em pratos cerâmicos, temas e derivações que parecem não conhecer limites. Uma revisitação selectiva das muitas centenas de páginas ilustradas em revistas como O António Maria, Ponto nos ii, O Mosquito, A Paródia, etc., permitiu respigar delas um lote de intervenções e cuidados de Rafael Bordallo Pinheiro sobre o que poderíamos chamar, simplisticamente, “urbanismo verde”.

A acelerada metamorfose vegetalista de figuras e personagens acabaria por chegar ao divertido figurinismo teatral dos seus últimos anos

A época era toda outra, e não era pior, deste ponto de vista. No Rio de Janeiro e Paris — em que o artista viveu e trabalhou de 1875 a 1879 e em 1889, respectivamente — homens de classe média, escritores e artistas usavam flores exuberantes na lapela sem correrem o risco de ser fustigados com graçolas impiedosas (elegância perdida, em que regredimos muito…), e jardins botânicos e de climatização, como novos circuitos habituais de lazer mundano, rivalizavam entre si na exibição de flora autóctone ou exótica. Ecoava ainda o movimento Arts and Crafts, com William Morris à cabeça — que a motivos florais tanto havia ido buscar para os seus papéis de parede, têxteis e ilustrações literárias —, e o art nouveau florescia a cada esquina na arquitectura das grandes cidades europeias.

Mas foi sem dúvida tocado pela exuberância da flora brasileira que Bordallo Pinheiro começou, inclusive criando especímens imaginárias (Chinfrinaria Arola-Garyana e Marquorum Sobrinhorum, Imprensae Rolhorum, pp. 28-29; anos mais tarde, já em Lisboa, Bacoconifera constitutionalis, Povinhorum contribuintibus e Rex Madurazia, pp. 59, 65, 129 e 138-47) para figurar o seu “espinhoso” (sic) sarcasmo político. Tinha 30 anos apenas, lia a Revista de Horticultura para saber que eventos acompanhar enquanto caricaturista, e a qualidade do seu traço haveria de ser notado por José de Saldanha da Gama, “autor de referência na botânica brasileira” (p. 31) que o convidou a desenhar flores para a Escola Politécnica. “Os seus desenhos de plantas gradualmente chamavam a atenção da comunidade científica” (p. 39) e “sobretudo dos jornalistas de horticultura brasileiros independentes que […] primavam pela cultura e sentido de humor” (p. 41). Como Susana Neves esclarece muito bem, demonstrando quanto vale uma pesquisa extensa e bem feita, um dos seus desenhos, “O beijo de Judas” (p. 23), mimetiza a cena arbórea duma litografia de Carolus de Martius incluída na sua monumental e famosa Flora Brasiliensis (1855). Só ela, creio, saberia dizer-nos que a árvore no desenho preparatório da litografia “Páginas íntimas”, publicada n’O Mosquito a 16 de Setembro de 1876, é uma Árvore-do-viajante “meio despedaçada” para sinalizar o luto do artista pela recente morte de sua mãe. Ou fazer notar que os escritórios dos periódicos em que Rafael trabalhou — O Mosquito, Psit!! e O Besouro — funcionavam na Rua do Ouvidor, 127, a poucos passos da mais importante editora-distribuidora de litografia e fotografia feitas no Brasil (sediada no n.º 36), representando Georges Leuzinger, Marc Ferrez e Albert Frisch, o “pioneiro da fotografia da flora e dos povos da Amazónia” (p. 25).

Num auto-retrato reproduzido em pequena dimensão mas merecedor de uma página inteira (p. 27), e tomando como mote uma fábula de LaFontaine, Rafael desenha-se numa densa trilha da Floresta da Tijuca, segurando um lápis enorme que lhe serve de defesa contra literatos cariocas “de prosa chata e realismo vil”, ali figurados no topo das árvores como pássaros de cabeça humana e cartola. O denso universo de referências eruditas mas também folclóricas de Rafael Bordallo — a sua “quase inveterada bulimia cultural” (Neves, p. 103) — sempre foi um desafiante enigma para os seus estudiosos e comentadores, mas a partir de agora ficamos cientes de que também “a sua curiosidade florística o levava a todo o lado” (p. 73), interessado afinal por floricultura, horticultura, jardinagem e botânica tanto quanto, entre muitos outros assuntos, por teatro ou ópera (de que foi espectador assíduo, nem sempre reconhecível), mas também em apoiar tendências pedagógicas para que o gosto da jardinagem e da vida ao ar livre fosse induzido a todos desde tenra idade. Em 1884, dois anos depois de ter sido criado o primeiro jardim de infância no país — seguindo doutrina célebre do afinal há muito falecido Friedrich Fröbel (1782-1852) —, Rafael participa graficamente numa iniciativa da rainha Maria Pia na Real Tapada da Ajuda para angariação de fundos para a criação de creches, suspendendo a sua “nascente veia anti-trono” a que Fialho se referirá numa crónica da Ilustração Portuguesa em 1906… Três anos mais tarde, comparece “com entusiasmo” na Avenida da Liberdade para reportar e ilustrar a curta e breve Batalha das Flores — uma vez mais inspirada em modelo estrangeiro, no caso o do francês Alphonse Karr (1808-90) no carnaval de 1876 em Nice (p. 107), e uma vez mais, também, prestigiada por membros da família real, incluindo o futuro rei D. Carlos —, levada a cabo por elementos da nobreza e da alta burguesia, contrariando as bárbaras cargas de seringadores, bisnagueiros e atiradores de tremoços que representavam uma “cultura grosseira, retrógrada e violenta que persistia em Lisboa” (p. 111).

O denso universo de referências eruditas mas também folclóricas de Rafael Bordallo sempre foi um desafiante enigma para os seus estudiosos e comentadores

Susana Neves segue-o até à voluptuosa exposição de rosas do afamado horticultor José Marques Loureiro (1830-98), proprietário da Real Companhia Hortícola-Agrícola Portuense, a cuja inauguração lisboeta, em Abril de 1880, compareceu o rei-artista D. Fernando II (aliás apoiante-accionista da sua indústria cerâmica caldense e “genuíno aficcionado de jardinagem e horticultura”, p. 81), e identifica nas pranchas de Pontos nos ii o apreço do artista pelo floricultor, fotógrafo, ourives, gastrónomo, boxista e livreiro-editor francês Paul Henry Plantier (1840-1906), que da sua quinta da Piedade, na outra banda, trazia “as melhores rosas deste mundo” para ornamentar as suas vitrinas comerciais na Rua do Ouro, com uma “grande sinfonia de cor e perfumes” (Março de 1888 e Abril de 1890, cit. p. 95). Mas vai mais longe, reconhecendo que “quanto mais Bordallo se aproxima da linguagem popular, mais as suas caricaturas [políticas] se tornam compreensíveis, irónicas e vegetalistas. Uma espiga não simboliza apenas pão, mas um problema, um encargo, um peso” (p. 131). Em Janeiro de 1883, Fontes Pereira de Mello e Luciano de Castro apresentaram-se ao rei D. Luís, na Câmara dos Pares, levando a ombros uma padiola com três nabos descomunais (p. 128), sobre a legenda jocosa de “Está aberta a praça da Figueira”, na verdade inaugurada dois anos depois… Em Março de 1891, compara a sociedade portuguesa imatura e desgovernada a um “vil trambolho”, “um pepino que cresceu mal” (pp. 141-42). Em Julho de 1903, o Quercus faginea — cujas proporções majestosas foram símbolo da monarquia constitucional e das qualidades ancestrais portuguesas — atrofiara-se ao ponto de tornar-se “árvore delirerada”, esquálida, esgotada e em delírio (A Paródia, cit. p. 141).

Essa acelerada metamorfose vegetalista de figuras e personagens acabaria por chegar ao divertido figurinismo teatral dos seus últimos anos, como o da actriz Stephania Pinheiro, todo feito com folhas de hortaliça, para uma peça de grande sucesso em 1897 (p. 142), ou aqueloutro, quase carnavalesco, só com melancias (Isabel Castanheira, 2018, p. 13), mas é ainda e sempre à cultura popular e sobretudo à citação erudita — como as gravuras do francês Amédée Varin para as Drôleries végétales. Émpire des légumes, de Eugène Nus e Antony Méráy (1851), que Susana Neves identifica como inspiradoras de várias pranchas políticas — que importa continuar a perscrutar e descobrir a extraordinária obra deste artista português, que doravante tem neste livro, sem qualquer dúvida, um pilar essencial da sua bibliografia crítica.

O lançamento deste livro ocorreu no dia 26 de Novembro no Museu Bordalo Pinheiro, com a participação de Emília Ferreira e de Maria Amélia Martins-Loução. A sessão, transmitida em live-streaming, pode ainda ser acompanhada no website do Museu. A intervenção do vereador municipal fala por si…