Por onde começar? Talvez pelo último fim de semana de novembro do presente ano, quando Cher voou dos Estados Unidos até Islamabad, no Paquistão, para acompanhar a libertação de um elefante que, desde meados dos anos 80, vivia encarcerado num jardim zoológico local desde bebé. A história, mediatizada à conta do apoio da cantora norte-americana, rendeu a Kaavan, o paquiderme em questão, o título de “elefante mais solitário do mundo”. Cher esteve lá e acompanhou a jornada, num santuário de conservação animal no Cambodja, muitos quilómetros e quase 327 mil euros depois.

“Neste momento estamos a trabalhar na libertação de um gorila e de outro elefante”, admitiu na mais recente conversa com o britânico The Guardian. Cher, uma feroz defensora dos direitos dos animais? O pregão é inédito e indício de que o mundo está perante uma personalidade multifacetada e capaz de se reinventar, nas suas artes e nas suas causas, mesmo aos 74 anos.

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No final de novembro, Cher acompanhou a viagem do elefante Kaavan até ao Cambodja © TANG CHHIN SOTHY/AFP via Getty Images

Foi essa complexidade que, há oito anos, atraiu a atenção de Orquídea Cadilhe, uma portuguesa acabada de chegar dos Estados Unidos, com tenções de avançar para o doutoramento. Cher nunca tinha sido um ídolo, mas depressa foi promovida a objeto de estudo. “Ela surgiu num contexto puramente académico, o do meu percurso, que está muito ligado aos estudos feministas e de género, aos estudos culturais e de performance. E foi uma coincidência”, explica.

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Durante oito anos, estudou a vida, a carreira e a imagem de Cher e, no último mês, defendeu a tese na Universidade do Minho. A orientadora começou por lhe falar de Madonna, mas Orquídea arranjou outros planos. “Estava a ouvir música dos anos 80 e a Cher chegou-me aos ouvidos. Comecei a ver um vídeo atrás do outro e percebi automaticamente que ela podia vir a dar um estudo de caso bem mais interessante do que a Madonna”, continua. Recém-chegada dos Estados Unidos, começou a escrever os primeiros artigos ainda em 2012 e a pôr a narrativa de Cherilyn Sarkisian ao lado de mitos da cultura clássica.

Cher: um estudo intertextual

Na sua proposta de doutoramento, Orquídea Cadilhe propôs-se a abordar um fenómeno da cultura popular com pinças académicas. Das afinidades com as minorias ao poder de reinvenção do ícone, encontrou em Cher um fator de ignição de mutações sociais recentes. “Ela não só reescreve alguns dos mitos da cultura clássica como acaba mesmo por desconstruir, em particular, o mito da mulher desviante. Essa mulher perigosa passa a ser apresentada, por ela, como uma mulher empoderada. A partir daí, ela ganha significado para diferentes minorias étnicas e de género”, refere.

Cher Backstage

Cher em 1968 ©Michael Ochs Archives/Getty Images

“Figuras como ela tornam-se ícones da cultura popular — mitos, de certa forma — por se colocarem lado a lado com as fileiras consideradas marginais pela sociedade, fazendo com que ganhem força para lutarem pelos seus direitos. Não é por acaso que a Cher tem um impacto tão grande na comunidade gay”, continua. Orquídea sublinha a importância de figuras liminares como a cantora — suficientemente consensuais para agradar à sociedade mais tradicional, mas dotadas de uma linguagem transgressora. “É aqui que se tornam importantes, porque criam um ponto de ligação entre o padronizado e o que é considerado fora da normal, por vezes aberrante”, conclui.

Por fim, a resiliência. Ao longo de quase 60 anos de carreira, os altos e baixos de Cher tornaram-na elástica e indestrutível aos olhos do público. “Ela teve vários picos na carreira e, noutras alturas, quase caiu no esquecimento. Mas teve sempre a capacidade de se reinventar e é profundamente conhecida por isso”, comenta. Um desses picos aconteceu em 1983, quando uma Cher subestimada contracenou com Meryl Streep no filme “Reação em Cadeia”.

Subestimada? É conhecido o episódio em que uma sala inteira se riu quando viu o seu nome no trailer. Sentada na última fila, descreveu mais tarde a sensação como desoladora. No ano seguinte, recebeu a primeira nomeação, para o Óscar de Melhor Atriz Secundária. Quatro anos depois, vingaria oficialmente perante a Academia, ao ganhar o Óscar de Melhor Atriz Principal pelo filme “O Feitiço da Lua”.

Feminismo e Biden. O lado político de Cher

Cher é apoiante da candidatura de Joe Biden desde o primeiro dia, e deixou isso bem claro quando, em outubro deste ano, gravou o tema “Happiness is Just a Thing Called Joe”. A missão de ver eleito o candidato democrata em 2020 levou a subir ao palco, mas também a destilar o seu ódio por Trump no Twitter. “Ele não tem um pingo de bondade dentro dele”, exclamou durante a entrevista ao The Guardian, ela que foi visita de casa dos Reagan e manteve ótima relação com os Clinton.

Antes da militância partidária, Cher já era uma figura politizada. Com um percurso académico ligado aos estudos feministas, Orquídea Cadilhe é a primeira a sublinhar o papel que teve ainda nos anos 70. “Alguns autores afirmam que ela denegria o papel da mulher por se apresentar de uma forma muito feminina, numa altura em que a postura das feministas era, precisamente, a de não serem femininas para serem feministas. Não usavam soutien, não se depilavam”, contextualiza. Cher era o oposto, um sex symbol, além de um promissor símbolo de elegância no feminino, sempre ao lado do marido, Sonny Bono.

“Acho que ela estava mais à frente no tempo e a adotar um feminismo mais de terceira vaga, em que não precisamos de deixar de ser femininas para ser feministas. Já nessa altura, ela passava essa mensagem”, remata. O divórcio chegou em 1975. Aos olhos do público, terminava não só o casamento, mas também uma relação de dependência financeira e mediática.

Sonny and Cher, 1966

Cher e Sonny, em 1966 © Kent Gavin/Mirrorpix/Getty Images

Sonny acabaria por deixar o mundo do espetáculo e por se dedicar à política, “como republicano, o que é interessante”. As perspetivas matrimoniais de Cher tornaram-se claras vários anos depois. Numa entrevista à NBC, em 1996, partilhou o enriquecedor diálogo com a mãe, depois de esta lhe ter dito que haveria de casar com um homem rico — “Mãe, eu sou um homem rico”.

A vida depois de Cher

Em 2018, Orquídea voou até Göttingen, na Alemanha, para participar numa importante conferência na área dos estudos de género. Anos antes, não imaginaria que o auto-tune de Cher pudesse despertar tantas reflexões. “Believe”, êxito de 1998, apresenta uma Cher que ponto de ligação entre o humano e o pós-humano, um cyborg. “Isto volta a fugir ao padronizado e pode levar-nos ao Frankenstein e ao hibridismo, o que acaba por ser muito frequente na carreira dela. Foram escritos alguns artigos sobre isso na altura, mas fora do contexto académico”, explica.

Orquídea Cadilhe, a autora da tese sobre Cher

Em Portugal, trabalhos como este, debruçados sobre personalidades e fenómenos da cultura popular, são ainda raros. Um cenário diferente do das universidades norte-americanas, onde parece não haver áreas vedadas à lupa académica. “Fui sentido sempre um certo receio quando me perguntavam o que é que estava a trabalhar para o meu doutoramento. Acho que começava sempre a conversa com um ‘não te rias'”, admite. Nada que o método científico não resolva. E mesmo que esse falhe, Cher, a diva sem idade, terá sempre um hit inspirador.