Michelangelo, o artista italiano que nasceu há mais de 500 anos, costumava dizer que uma escultura só se tornava boa quando era atirada de um monte e perdia tudo o que tinha a mais enquanto rolava. Mas João Cutileiro, autor de algumas das esculturas mais célebres em Portugal, que morreu esta terça-feira, encontrava a sua assinatura artística noutro ângulo: “Eu tinha vindo atrás a apanhar os bocados e a fazer esculturas com os bocados”.
Foi assim que resumiu o seu contributo para a arte da escultura, num dos últimos projetos em que participou: “Pós-Pop. Fora do lugar-comum”, realizado por Tiago Figueiredo para a Fundação Calouste Gulbenkian. E acrescentou: “A fome sexual e a fome gastronómica são as forças que me moldaram e que se refletem, certamente, em todo o traço que faça”.
João Cutileiro from Tiago Figueiredo on Vimeo.
Durante seis minutos e oito segundos, João Cutileiro deixou-se entrevistar num salão coberto de pó branco, ornamentado com nada mais do que pedaços de mármore em bruto, alguns deles molhados pela chuva, papelada e os materiais que dão corpo à obra. Falou, por exemplo, da caricata estátua de D. Sebastião que ofereceu à cidade de Lagos e é com uma frase sobre ela que fecha a entrevista: “Não tive tempo de agradar a toda a gente”.
João Cutileiro explicou que ofereceu a estátua para não receber dinheiro por ela e, assim, estar “completamente livre de a fazer”. A obra foi inaugurada em setembro de 1973, apenas sete meses antes da Revolução dos Cravos: “Foi pouco tempo. Não sei o que teria sido de se não tivesse havido o 25 de Abril naquela altura. A estátua não era bem aquilo a que as pessoas estavam habituadas”.
O escultor disse ter sofrido uma “perseguição” por ter fugido ao convencional naquele trabalho, mas não se arrependia do produto final, pelo contrário: “É um orgulho”. E citou Sartre para explicar porquê: “Quando as coisas não agradam a ninguém, são capazes de ser más. Mas se agradam a toda a gente são más de certeza”, frisou João Cutileiro entre gargalhadas.