Um debate, dois candidatos, visões completamente diferentes sobre o país e sobre o papel do Estado na economia. João Ferreira e Tiago Mayan Gonçalves mediram forças e falaram quase em exclusivo para os seus respetivos eleitorados. Vincaram diferenças, trocaram algumas caricaturas um sobre o outro e acabaram a discutir o inferno do primeiro (um país desregulado nas mãos da tirania dos privados) e do segundo (um Portugal à imagem e semelhança da Venezuela). Não roubaram votos um ao outro; nem era expectável que isso acontecesse. São de universos diferentes que nunca se tocam. Ou quase nunca.

Curiosamente, o debate começou precisamente por um dos poucos pontos em que os dois convergem: a rejeição do Estado de Emergência tal como ele tem vindo a ser utilizado, com supressão parcial de direitos, liberdades e garantias. “A vida tem de continuar”, disse Ferreira. “O país não aguenta outro confinamento. A pobreza também mata”, concordou Mayan Gonçalves.

Mas, mesmo aí, comunista e liberal começaram a mostrar as diferenças: João Ferreira sugeriu que só um investimento forte e decidido em particular nos cuidados de saúde públicos permitirá conter a pandemia; Mayan criticou o facto de o Governo continuar sem usar toda a capacidade instalada na saúde, nomeadamente com recurso aos privados.

A crise social e económica que se avizinha foi o tema seguinte e a clivagem entre os dois ficou ainda mais evidente. João Ferreira a acenar com o papão do liberalismo de Pedro Passos Coelho, a defender o reforço do mercado interno, a recuperação de empresas e setores estratégicos para as mãos do Estado e a valorização de rendimentos. “O João está preso no século XIX. Isto é uma receita para o desastre. A ideologia comunista trouxe sempre a desgraça e a destruição económica”, devolveu Mayan Gonçalves. Por oposição, o liberal defendeu menos impostos e menos obstáculos para as empresas, que devem ser o motor de criaação de emprego.

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Nesta altura do debate, já os dois adversários agitavam os piores fantasmas atribuídos a um e a outro: o comunista que quer nacionalizar todos os aspetos da economia; e o liberal cego que atirará para a pobreza milhões de portugueses deixando à solta o mercado selvagem. “O paraíso liberal é o inferno dos povos”, atirou Ferreira. “O inferno é a Coreia do Sul e a Venezuela”, reagiu Mayan. Coreia do Sul foi um lapso; o liberal queria falar da Coreia do Norte.

Com algumas interrupções e com acidez crescente, destaque para o momento em que os papéis se inverteram: João Ferreira a defender a injeção de capital público no Novo Banco — ainda que, tal como criticou, falte a parte mais importante que é o controlo do Estado; e Mayan Gonçalves a garantir que deixaria cair o banco no primeiro minuto. “Uma empresa que opera no mercado e falha, é o destino. A mim surpreende-me que seja o João sempre a querer ajudar os bancos”, provocou o liberal.

No final do debate, João Ferreira voltou a trazer um tema caro para a esquerda, o da Habitação, criticando as ideias do liberal neste capítulo. Na resposta, Mayan defendeu a uma alteração às leis de arrendamento, que, disse, paralisam o mercado, e um reforço da autonomia das autarquias locais para políticas de habitação, com aumento de oferta no mercado de arrendamento acessível.

Na vez de Mayan, o liberal atacou o PCP por continuar a defender benefícios fiscais para os partidos, nomeadamente a isenção no pagamento de IMI — um tema caro ao eleitorado de direita. Na resposta, João Ferreira lembrou que os partidos “têm, ou devem ter, um papel com relevância na intervenção social; não são empresas que visem o lucro.”

E foi com esta toada que o debate caminhou até ao fim com os dois candidatos a terminarem exatamente onde sempre estiveram: em planetas diferentes.