Até nos duelos mais mortais há um cumprimento inicial entre as partes. “Senhor professor”, “senhora embaixadora”. Ana Gomes para Marcelo Rebelo de Sousa e vice-versa, a primeira provocação do debate estava no tratamento, cada um a pôr o outro no seu galho. Daí em diante, foi ver a candidata presidencial a colocar as cascas de banana que Marcelo mostrou não o surpreenderem, passando o debate a usar os grandes trunfos de Ana Gomes a seu favor.

Corrupção e Ricardo Salgado? “Escusa de tentar atingir a minha honorabilidade e integridade”, atirava Marcelo em tom de vítima depois de Ana Gomes ter dito que pela “relação” que o Presidente tem com Ricardo Salgado era “dos primeiros a ter interesse em que o caso seja apurado. E sete anos depois, o julgamento ainda nem sequer começou. E o caso BES está ligado ao caso Sócrates, aos casos de evasão fiscal…”.

A luta contra a corrupção é o trunfo-maior de Ana Gomes, mas Marcelo fez do assunto pantanoso — e do caso concreto do BES que há cinco anos era o que mais o fragilizava — um ganho seu. “Tenho o mesmo interesse dos outros portugueses em esclarecer o caso”, afirmou já depois de ter atirado que a referência a Salgado “vem sempre no programa” dos seus adversários. “Dizia-se que era amigo ‘vamos ver se não lhe facilita a vida’. Cinco anos depois foi condenado em três processos movidos pelo Banco de Portugal, foi finalmente acusado no processo BES. Não sei se percebe o quão ofensivo é aquilo que disse”, rematou. Ana Gomes não tocou mais no assunto.

Segunda bandeira de Ana Gomes em que Marcelo pegou e hasteou como sua: a questão da liberdade. A candidata de esquerda tem defendido a ilegalização do Chega e tem criticado a viabilização de um governo nos Açores (também) apoiado num acordo com o partido liderado por André Ventura. “Foi um partido legalizado com assinaturas falsas”, atirou Ana Gomes. “A lei não é para cumprir nesta matéria? Além de que tem um programa claramente anti-constitucional”, disse, falando no incitamento à limpeza étnica e à xenofobia e racismo. “Tudo isso não pode ser desvalorizado à luz da Constituição e do Código Penal”, atacou.

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Do outro lado, o “senhor professor” respondeu à “senhora embaixadora” por partes. Disse que se cumpriu a Constituição quando se aceitou o governo do Açores liderado pelo PSD com acordos com outros partidos, Chega incluído, porque quando foi apresentada a solução os acordos estavam firmados. “O que não aconteceu nas últimas legislativas”, atirou pelo meio em jeito de provocação à socialista partidária da solução de esquerda no Governo nacional. E quanto ao resto, a ilegalização, questionou Ana Gomes: “Porque é que não foi ao Ministério Público dizê-lo enquanto cidadã e só o diz agora que é candidata?”.

Ana Gomes atirou a responsabilidade para o Presidente, mas Marcelo recusou  e disse que não fez nada por ser contra a ilegalização, que considera “um disparate”. “Calá-los é vitimizá-los, não é preciso proibi-los, é preciso vencê-los pelas ideias”, disse Marcelo. E ainda agarrou no assunto do Capitólio — tão usado à esquerda e Ana Gomes para mostrar o risco do extremismo — antes mesmo que a adversária o fizesse: “Aconteceu porque democratas moderados não foram capazes de ganhar no debate estes anos todos”.

E até no caso Rui Pinto, outra bandeira de Ana Gomes, Marcelo aproveitou para dizer que e como comentadora que Ana Gomes deve manter-se. A adversária desafiava-o a valorizar o trabalho do pirata informático, a ele “que fala sobre tudo”. Marcelo agarrou o momento para mais uma indignação vitimizada: “Falar sobre casos de justiça? Isso fala a senhora embaixadora, que é comentadora”. E rematou, já o pano do debate estava a cair que “diz a senhora embaixadora que acha que foi muito importante esta posição. Pronto, não se pronuncia e pronuncia-se. Como Presidente da República havia de ser muito interessante, muito interessante…”. Isto para recusar comentar o caso que está na justiça e que Ana Gomes vai aproveitando a seu favor.

Os únicos dois planos mais escorregadios para Marcelo no debate foram o caso do SEF, em que Ana Gomes não o poupou dizendo que houve “graves erros” e que o Presidente “podia ter contribuído mais para soluções”. Marcelo não é eficaz a sacudir o caso que o fragiliza, diz que interveio logo em abril e lança um argumento de salvação in extremis: “É tão atenta e arguta e esteve este tempo todo sem reparar no caso”. Depois recorreu a uma arma que já usou neste debates: lançar uma novidade para fugir ao tema. Quando ouviu o diretor nacional da PSP que saiu de Belém a pedir a fusão das polícias e a extinção do SEF, fê-lo com o acordo do primeiro-ministro que soube do “teor da conversa mal ela terminou”. O que pareceu um estratagema de Belém para fragilizar o ministro da Administração Interna foi, segundo Marcelo conta agora, um episódio que não foi à revelia do Governo.

A outra fragilidade evidenciada por Marcelo foi o momento da pandemia. E acabou por assumir mesmo “responsabilidades” pelos atuais números por ele “pelo Governo e por todos os que participaram” no processo de decisão, onde inclui os partidos, “alguns ainda queriam menos restrições” no Natal. Mas o candidato admite que “o pacto de confiança” que firmou com os portugueses para a época natalícia “falhou”. E sossegou a adversária sobre o voto dos utentes dos lares, dizendo que está a estudar três hipóteses e nenhuma delas implica a saída dos idosos para irem votar a 24 de janeiro.

Ana Gomes resume Marcelo a um Presidente instabilizador, que oscila “entre ser o pai do primeiro-ministro ou tirar-lhe o tapete, ou até assumir os louros da ação governativa”. Mas Marcelo é experiente no comentário e já a tinha ouvido a referir-se à relação entre os dois como “magnífica” e atirou isso mesmo à adversária. “Tem de estabilizar a sua opinião”. Conselho de comentador “morto”, a comentadora posta. Que foi onde Marcelo tentou em colocar a “senhora embaixadora” nesta corrida.