Poucos minutos faltam para o início da sessão de esclarecimento em Santiago do Cacém. Cá fora, a aproveitar os raios do sol que contrariam as temperaturas baixas que os termómetros marcam, há as poucas pessoas que as contingências limitam e um sistema de som que anunciam o motivo da presença: “João Ferreira, coragem e confiança”. Contando com o tradicional cumprimento rigoroso dos horários, pouco depois das 11 horas João Ferreira entra na sala do auditório municipal António Chainho e é aplaudido de pé. Mesmo longe do milhar de militantes que estiveram no Coliseu do Porto no domingo, a sala estava a cerca de um terço da lotação máxima, que ronda os 140 lugares. Esse mesmo aplauso repete-se quando o candidato presidencial usa, pela primeira vez, um dos versos de Fernando Pessoa.

“Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez./Senhor, falta cumprir-se Portugal!” ou, na versão de João Ferreira: “Portugal está por cumprir. Esta candidatura existe também para cumprir Portugal”. Quando escreveu a Mensagem, Pessoa estaria longe de imaginar que um dos versos haveria de servir a um candidato apoiado pelo PCP numa corrida a eleições presidenciais, mas João Ferreira repetiu esta manhã várias vezes a ideia que “falta cumprir Portugal” e que só há um caminho para que tal aconteça: “Fazer cumprir aquele Portugal desenvolvido, coeso de que fala a Constituição da República Portuguesa”.

E, nesse cumprimento escrupuloso do texto da Constituição, João Ferreira deixou críticas à atuação de Marcelo Rebelo de Sousa, o adversário principal nesta corrida. “Se o juramento da Constituição tivesse sido levado a sério no passado a situação seria outra, para melhor. Tem de ser levado a sério, é por isso que aqui estamos nesta candidatura, para formular exercício alternativo dos poderes do Presidente da República que está verdadeiramente alinhado com o juramento que é feito. Disposição firme de a cumprir e a fazer cumprir, disso se distingue do atual Presidente da República”, apontou João Ferreira para ouvir, em resposta, um aplauso da plateia.

João Ferreira está confiante nos votos que poderá receber no dia 24 “independentemente das opções eleitorais do passado” — tal como tinha afirmado na apresentação oficial da candidatura — e no caminho a percorrer até lá. Ainda que tenha de superar as dificuldades que se colocam a uma campanha sem os tradicionais comícios, arruadas, almoços e jantares. Para já, João Ferreira diz que nos próximos dias poderão ser tornados públicos “apoios de todos os quadrantes políticos” e que provam que esta “não é uma campanha para marcar terreno”.

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“Esta candidatura cresce e afirma-se para lá das fronteiras onde nos queriam confinar. Não é por repetirem mil vezes que é para marcar terreno que ela se vai transformar numa candidatura para marcar terreno”, atirou o candidato presidencial que falou ainda numa “campanha de esperança até dia 24”.

O desfile de representantes sindicais na Casa do Alentejo

Para a tarde desta segunda-feira, a caravana de João Ferreira reservou os trunfos dos sindicalistas. O objetivo era mostrar que João Ferreira “escolhe como prioridade defender e valorizar o trabalho e os trabalhadores”. Como o próprio afirmou o anúncio do apoio de setores tão diversos como o da TAP ou d0s trabalhadores do setor dos espetáculos é “um motivo de grande regozijo” para o candidato apoiado pelo PCP.

As ligações estreitas entre os sindicatos e o Partido Comunista Português não são novidade e alguns dos oradores desta tarde tiveram também intervenções no último Congresso comunista, em novembro. Num verdadeiro périplo pelos vários representantes sindicais — deixando, claro a cereja para o final — a sala manteve-se em silêncio enquanto escutava, pouco entusiasmada com as intervenções que foram sendo proferidas do púlpito (meticulosamente desinfetado após cada intervenção).

Antes de João Ferreira tempo para Isabel Camarinha, a líder da CGTP-IN veio até à ação de campanha de João Ferreira dizer que só “nesta candidatura os trabalhadores e o país encontram a resposta que precisam”. “A Constituição da República, nascida como resultado do 25 de Abril, moldada pelo 1.º de maio não é neutra e assume proteção especial aos trabalhadores, da defesa do trabalho seguro e com direitos”, disse Camarinha arrancando o primeiro aplauso da tarde.

João Ferreira aproveitou a escada para dizer que o trabalho dos sindicatos e seus representantes segue “ombro a ombro” com o do PCP e que assim continuará “depois de dia 24”: “Conta e vai contar até dia 24 e para lá dele. É isso que faz a utilidade desta candidatura”.

Cassete de ouro no trabalho

O candidato presidencial fez questão de afirmar que os críticos que têm falado da “cassete da política laboral”, acusando João Ferreira de não a abanonar, o estão a elogiar. “É uma acusação que muito me orgulha, são medalhas que esta candidatura carrega”, disse aproveitando para deixar críticas aos outros candidatos: “na hora de fazer escolhas não fingimos neutralidade”.

E logo depois mais uma série de críticas a Marcelo Rebelo de Sousa pelas leis que promulgou sem “enviar para o Tribunal Constitucional” e que prejudicaram os trabalhadores do país. Falava, claro, das alterações à legislação laboral (que foram aprovadas na Assembleia da República por PS e PSD, na legislatura anterior), do valor do salário mínimo nacional que Marcelo diz quer “razoável”, da desregulação dos horários de trabalho e da falta de proteção dos mais jovens com o aumento do período experimental.

Cassete ou não, o PCP faz questão de não abandonar a defesa dos trabalhadores e João Ferreira fala para eles, para a “esmagadora maioria da população portuguesa, independentemente das escolhas eleitorais que fizeram no passado”. Para terminar mais uma referência literária. Depois de Fernando Pessoa de manhã, Maria Velho Costa — que morreu em 2020 — com o poema “Esta lei”.

Um serão de cultura com um post scriptum de Marcelo

Para fechar o dia, a campanha de João Ferreira reuniu alguns notáveis do setor da cultura com o objetivo de evidenciar a necessidade de apostar no setor e de retornar o acesso à cultura que o candidato presidencial considera que tem sido “mercantilizado” ao longo dos anos, fugindo àquilo que a Constituição determina. Considera João Ferreira que tem havido também uma “desresponsabilização do Estado em relação ao património cultural” e que “também na cultura há um país por cumprir, um Portugal de Abril a que a Constituição abriu portas e que o Presidente da República jura cumprir”.

Com a poesia a marcar, uma vez mais o início da ação, a atriz Maria João Luís abriu o serão dizendo “Encontro ao Encontro” de Manuel Gusmão, utilizado pelo PCP na comemoração do 95.º aniversário do partido, há cinco anos. Seguiu-se Luís Varatojo, que animou a sala bem cheia — fazendo algumas pessoas voltarem atrás perante o número de pessoas já reunidas no local — ao ensaiar o coro do refrão do tema recém lançado Luta Livre: “Associações, sindicatos e partidos/ as classes dominantes têm horror aos partidos”.

Seguiram-se intervenções da área do cinema e da escrita, com especial ênfase para a intervenção de Ana Margarida Carvalho, numa espécie de carta de amor a João Ferreira. Enaltecendo as conquistas do PCP na Assembleia da República e de João Ferreira enquanto vereador na Câmara Municipal de Lisboa, disse Ana Margarida que o candidato presidencial “não chegou ontem, hoje nem anteontem” e que “não olha para os eleitores como cíclicos” frisando que o agora candidato presidencial “já deixou património político inquestionável”. “Em linguagem de cinema João Ferreira é aquele que rouba a cena”, disse a escritora notando ainda assim que “estes não são tempos fáceis”.

E mesmo a terminar a soirré um post scriptum: Marcelo testou positivo à Covid-19. Em reação, João Ferreira diz-se “tranquilo” e a “aguardar informações das autoridades de saúde”. Não deixou de parte “confinar” parte das iniciativas previstas — já depois dos cortes em arruadas, jantares, almoços e comícios —, mas só depois da reunião com especialistas no Infarmed poderá decidir com toda a legitimidade. Até lá, continuará com uma ação em Lisboa e outra em Almada, a queimar os últimos cartuchos de salas meio cheias para ouvir as intervenções.

João Ferreira questiona Conselho Europeu no caso da nomeação do Procurador José Guerra

À margem da sessão de esclarecimentos, questionado sobre os últimos desenvolvimentos no caso da nomeação do Procurador Europeu o também eurodeputado eleito pela CDU disse ter “tomado a iniciativa de questionar ainda esta segunda-feira o Conselho Europeu” sobre aquilo que considera ser uma “trapalhada desnecessária” que envolve a ministra da Justiça e o próprio Governo português.

Ainda assim, João Ferreira destaca a decisão inicial tomada pelo Conselho Superior do Ministério Público “que se pronunciou com base num currículo que não foi posto em causa”.

Este artigo foi atualizado ao longo do dia