Título: Os Perseguidores
Autora: Ana Teresa Pereira
Editora: Relógio d’Água
Páginas: 120
Preço: 16€

A capa de “Os Perseguidores”, de Ana Teresa Pereira (Relógio D’Água)

Ana Teresa Pereira surpreende ao entrar a pés juntos num romance. Os Perseguidores agarra quem se lança a ele logo no primeiro parágrafo:

“Para mim, era só mais um homem a destacar-se (…) Não olhei para o rosto dele; nunca olho para os rostos deles. Fato cinzento, camisa cinzenta. Camisa limpa.” (p. 11)

O romance é curto mas nem por isso é de somenos que a autora aguente o nível de elegância e contenção até ao fim. A dimensão psicológica das personagens permite uma tensão permanente que desconcerta e agarra no mesmo movimento. A autora vai mais longe e atinge uma espécie de violência em descrições quase melífluas:

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“Foi o meu corpo que o sentiu primeiro. A mão na cintura, a mão que segurava a minha, eram firmes mas não insistentes. Sentia o cheiro dele, uma água-de-colónia fresca e cigarros.” (p. 11)

O romance está dividido em três partes e começa com uma mulher que usa um perfume forte para se proteger do cheiro dos homens. Fá-lo na Dance Academy, uma “espelunca onde os homens pagavam uns cêntimos para rodear uma rapariga com os braços” (p. 12). Da sua parte, está “humilhada e feliz por onde saber de onde vinha a próxima refeição” (p. 12). Ainda por cima, o lugar até é “sério”. Afinal, não vendem as almas, “só o direito de os despedaçar” (p. 12)

O seu cansaço é evidente: começa em cansaço, acaba em angústia, numa sequência que a enlouquece enquanto um homem se segue a outro, e que perturba o leitor. No romance, tudo é tenso, a prosa é contida, e a angústia aumenta quando percebemos que a mulher que acaba na Dance Academy começou por fugir à lassidão dos dias, impulsionada por uma ingenuidade que a conduziu para ali. Antes disso, queria ser atriz. Estava cansada da sua cidade de província, de namorar com o rapaz da casa ao lado, de trabalhar numa loja, de ir ao cinema ao sábado à noite. Um dia fugiu de casa: para escapar àquele destino, quis forjar o seu. Quatro anos depois da fuga, já estava na Dance Academy, e um homem apertava-se contra si.

Se o leitor nota o cansaço daquela vida, também percebe o cansaço de cada dia, ou cada noite: as raparigas conversam alegremente antes das oito horas; à uma, já não têm nada para dizer. O batom está esborrachado, o cabelo desalinhado. Os homens deixam marcas de passagem.

Ela envolve-se enfim com Tom, que frequenta a Dance Academy. Ele escreve histórias, acha-a parecida com a sua personagem principal. Como consequência da relação, ela deixa de ir para ali. Tom quer alimentar-se dela, ela não sabe se acha boa ideia, ele sugere que se alimentem um do outro.

Aqui, a autora introduz outra dimensão: ela assusta-se com as histórias dele. Começa a lê-las e já não há saída.

“Não sei como o fazes.

O quê?

Escreves uma palavra, e ela torna-se terrível.

Não. Eu mostro que era terrível.

Já era terrível antes de lhe tocares?” (p. 24)

No que parecem media dúzia de traços quase displicentes, uma conversa casual entre dois amantes, Ana Teresa Pereira parece conseguir resumir o propósito da literatura ao mesmo tempo que o questiona. E, mesmo já tendo outra vida, a angústia da personagem ainda faz mossa, já que a autora contempla o decadente a partir de dentro ao mesmo tempo que mostra os efeitos psicológicos e sociais da despersonificação que a objetificação implica. A ideia do rodopio de homens, da vertigem de um a seguir ao outro, de tal forma que se mesclam numa imagem sem rostos nem nomes, acentua essa decadência, e a crueza da prosa denuncia a angústia. Na primeira pessoa, tudo fica claro:

“Acho que não foram os primeiros dois anos em Nova Iorque que me destruíram. Não foi ser empregada de mesa ou ir a audições. Eu tinha esperança, e o pequeno quarto que alugara era só uma antecâmara. E os homens tinham rosto, eram simpáticos ou repugnantes, mas conseguia olhar para eles. Foi depois, a dança, e o vestido preto, e aquelas mãos, e aqueles hálitos, noite após noite. Eu pensava em voltar para casa, mas isso seria aceitar a derrota. E todas as noites às oito horas estava no vestiário com as outras raparigas, falávamos, ríamos… e algumas horas depois ficávamos em silêncio. Não vendem a nossa alma naqueles lugares, são demasiado inteligentes para isso; só a despedaçam.” (p. 26)

Depois disto, quando o amante precisa de escrever fora de casa e aluga um quarto barato na cidade, ela sente-se traída. Tom dissera-lhe que precisava dela, da sua presença na casa, mas então já não gostava da ideia de a ver no seu caminho. Ela seria a mesma, talvez mais magra, tal como ele. Talvez alimentarem-se um do outro não fosse saudável. Ainda por cima, as histórias dele assustam-na mais e mais:

“Estendeu o braço para mim e eu recuei.

O que se passa, querida?

Tenho medo de ti.

Disse as palavras quase sem me dar conta.

Ele limitou-se a sorrir.

Leste muitas das minhas histórias, querida.

É como se contaminassem tudo.

A realidade é uma coisa muito frágil.” (p. 36)

Ou seja, obra e autor igualam-se, e portanto a literatura contamina a vida ao imiscuir-se nela. Durante a leitura, também o leitor se sente contaminado com o fundo de beleza que, parecendo vir de levezinho, é um canto de sereia que amarra alguém a uma história.

Quando Tom deixa de se alimentar dela, há um caminho sem retorno. A paixão acaba e conduz à acalmia. O fim da relação transforma-se em alívio. Nesta parte, ela resolve voltar para a sua cidade. Porque não o fizera antes? A mãe ainda a esperava. E talvez aí pudesse voltar ao destino que lhe estava programado antes de ter ido procurar o seu: “Não seria difícil encontrar um emprego. Talvez casasse com o rapaz da casa ao lado. E iria ao cinema no sábado à noite.” (p. 42).

Com isto, a autora mescla ilusão com queda, contrasta horror à acalmia com paz da acalmia e apresenta a realidade pragmática como faca de dois gumes. Na sua prosa, é evidente o fundo permanente de beleza. É difícil definir o que é o belo, mas lemos Ana Teresa Pereira e sabemos que está lá.