Quando John Coltrane assinou contrato com a Impulse!, em 1961, já consolidara fama de músico incendiário e vanguardista e trocara os standards pelas suas próprias composições, cada vez mais idiossincráticas e ousadas, o que, se lhe valia a admiração de muitos músicos e críticos, intimidava o público mainstream.

A Impulse! não tentou coarctar a criatividade de Coltrane, mas, a bem da saúde das finanças da editora, conseguiu, pelo menos numa primeira fase, que ele registasse também alguns álbuns mais serenos e “acessíveis”, como Duke Ellington & John Coltrane, Ballads e John Coltrane & Johnny Hartmann (todos surgidos em 1963). Em 1991, a Impulse! voltou a tentar “vender” Coltrane aos jazzófilos mais conservadores e circunspectos, reunindo as faixas mais “mansas” do saxofonista (provenientes sobretudo dos três discos acima mencionados) numa compilação intitulada The gentle side of John Coltrane.

É também o “lado gentil” do saxofonista Martin Küchen (n.1966) que assoma em Mind the gap of silence (Clean Feed), em parceria com o Landaeus Trio, formado por Mathias Landaeus (piano), Johnny Åman (contrabaixo) e Cornelia Nilsson (bateria), naquele que é o quarto álbum deste consórcio escandinavo – antes houve Four lamentations and one wicked dream of innocence (2014, Moserobie), The pity of it all (2016, Moserobie) e VYNIL (2018, Moserobie)

Küchen é o motor criativo – e ideológico – dos grupos Angles, Trespass Trio e All Included, que têm vindo a ser editado regularmente pela Clean Feed e que dão a ouvir jazz de combate, com raízes em Charles Mingus e noutro jazz engagé, dos anos da luta dos afro-americanos pelos direitos civis, e que tem como combustível a indignação pelas injustiças que continuam a corroer o mundo do século XXI, exibindo um espectro emocional que vai do lamento pungente à fúria desabrida.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[“Mind the gap of silence”]

O facto de Küchen assumir uma postura mais lírica e apaziguada na parceria com o Landaeus Trio não significa que a música seja frouxa, inócua ou amável: se a faixa que dá título ao álbum é uma balada triste e rarefeita (onde os ouvidos portugueses poderão descortinar inflexões fadistas), em “Old Harriot Hat” o quarteto mostra estar familiarizado com os códigos do hard bop e faz prova de vitalidade e fogosidade.

[“Old Harriot hat”:]

E “Love, flee thy house (in Breslau)” não anda longe de alguns ambientes dos Angles e do Trespass Trio, com o saxofone a lançar gritos de exaspero sobre a secção rítmica entrecortada e tumultuosa.

[“Love, flee thy house (in Breslau)”:]

O álbum encerra em tom elegíaco, com o saxofone divagando melancolicamente sobre uma pulsação minimal e imperturbável de contrabaixo e bateria e cintilações de piano: uma deambulação por uma cidade de cinzas sob um firmamento de estrelas mortas.

[“Sounds and ruins”]