“Estava ciente de que estamos a passar pela pior fase de Covid-19 em Portugal, mas fiquei verdadeiramente chocada com os gráficos e com os novos números que li”. Alice Trewinnard tem mais de 260 mil seguidores no Instagram e os últimos números da pandemia fizeram-na partilhar um dos artigos referentes ao tema nas stories da mesma rede social.

“Os relatos e desabafos de médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde começaram a surgir. Fiquei tão perturbada e incrédula com o que li que achei por bem partilhar. Nunca tinha recebido tantos relatos desta natureza, principalmente vindos de profissionais de saúde”, explica ao Observador.

Dois dos testemunhos enviados à influenciadora Alice Trewinnard

Os alegados testemunhos, vindos de profissionais de hospitais como o Santa Maria e o Curry Cabral, ambos em Lisboa, começaram a pingar, depois de partilhado o liveblog do Observador. Falam de profissionais exaustos, de falta de camas e de opções feitas perante a incapacidade de tratar todos os doentes Covid-19.

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“Sou enfermeira e só tenho a dizer que isto está totalmente descontrolado!”. “Tem de se ponderar remover ventilador a quem não está a recuperar, para dar oportunidade a outra pessoa”. “Chegámos este mês a um cenário de guerra”. “O que se pratica na Urgência [do Santa Maria], atualmente, é medicina de guerra”.

“Com a partilha dos testemunhos, surgiram cada vez mais desabafos e relatos de profissionais de saúde e da linha da frente. Por outro lado, começou a haver uma espécie de efeito bola de neve nas partilhas que ia fazendo, pelos próprios seguidores que liam esses testemunhos. Eles próprios amplificaram os desabafos que ia partilhando de maneira a alcançar ainda mais pessoas”, resume.

Dois dos testemunhos enviados à influenciadora Alice Trewinnard

A “bola de neve” só aumentou de tamanho ao longo do fim de semana e os testemunhos enviados por mensagem a Alice foram partilhados vezes sem conta. Investida na responsabilidade de dar voz aos profissionais que lhe escreviam, foi partilhando cada mensagem. Para Alice, ter tantas dezenas de milhar à escuta traz oportunidades que devem ser aproveitadas.

“A partir do momento em que tenho uma plataforma que é pública e chega a tantas pessoas, o sentido de responsabilidade é, também, acrescido. Além disso, acredito que é importante darmos voz não só às causas nas quais acreditamos e nos identificamos, como também a situações importantes que são transversais e nos impactam a todos, como é o caso desta pandemia”, resume a influenciadora, com formação em Ciências da Nutrição.

Mariana Soares Branco: “Foi um grito de ajuda dos profissionais de saúde”

Aos 27 anos, Mariana assiste à distância ao drama português. Vive em Valência, onde trabalha como médica radiologista desde setembro do ano passado. No último domingo, à boleia do apelo lançado por Alice, recebeu também ela vários testemunhos das situações limite vividas nos hospitais, nomeadamente o de uma enfermeira que relata ter assistido ao “exercício que os médicos fazem para decidir qual dos cinco doentes que têm para internar deve ocupar a nossa única vaga disponível”.

“Chegámos a um ponto em que os profissionais de saúde estão tão exasperados que viram na partilha da Alice um meio para terem contacto direto com o público. É a maravilha das redes sociais — podemos chegar diretamente às pessoas de forma mais imediata. Uma coisa eu sei: foi um grito de ajuda dos profissionais de saúde”, refere Mariana ao Observador.

Dois dos testemunhos enviados a Mariana Soares Branco

Segundo a descrição que mantém no seu perfil de Instagram, é “médica de dia” e à noite usa a rede social para discorrer sobre moda, sustentabilidade e saúde. A página já tem alguns anos, mas quando começou a exercer a profissão, ainda em Portugal, quis usá-la para preencher as lacunas de informação que foi diagnosticando do outro lado. “As pessoas sentiam falta de mais informação, por isso é que comecei a falar muito de saúde, sem deixar o meu lado mais estético. Já havia um grande vazio de conteúdo e isso acentuou-se brutalmente com a pandemia”, referiu.

Mesmo a centenas de quilómetros, compara a atual situação dos serviços de saúde portugueses ao impacto da primeira vaga no Norte de Itália. “Ainda ontem recebi mensagens a dizer que isto de escolher quem vive e quem morre não poder ser. Claro que não, mas alguém tem de tomar essa decisão, senão ninguém entra. Já não estamos na fase em que não temos de decidir se isso acontece ou não. Já está a acontecer e é frustrante ver pessoas que saem à rua três vezes por dia”, afirma.

Fala num serviço nacional de saúde que já sofria de falta de recursos e de profissionais. A Covid-19 veio acentuar as fragilidades. “Gostava que as pessoas entendessem que a corda já estava esticada antes do novo coronavírus. Obviamente que juntar a uma corda já esticada o que está a acontecer neste momento causa o colapso. As pessoas têm de pôr a mão na consciência e, mesmo que o Governo não decrete confinamento absoluto, fechar-se em casa durante uns tempos”, remata.

Questionada pelo Observador sobre a veracidade das mensagens que recebeu, Mariana recorre à situação vivida no hospital espanhol onde trabalha. “É uma situação semelhante. E penso que se dezenas de relatos são iguais, não deveríamos duvidar da sua veracidade”. O mesmo argumento encontra Alice, que fala também em “muitos outros relatos semelhantes a corroborarem situações muito parecidas”.

Redes sociais, um palco na luta contra a pandemia

Foi simultaneamente no Facebook, no Instagram e no Twitter que, durante o último fim de semana, Ricardo Baptista Leite, médico infecciologista e porta-voz do PSD para a Saúde, relatou o desespero vivido ao longo de um turno de 12 horas no serviço de urgência do Hospital de Cascais. O testemunho tornou-se viral, tal como o alerta lançado por Liliana Marques, que no seu perfil de Instagram chamou a atenção, este domingo, para a presença de uma influenciadora digital (com mais de 47 mil seguidores nesta rede social) numa festa. A conta foi, entretanto, desativada.

As stories partilhadas no último domingo sobre a suposta festa ilegal © Instagram.com/lily.justlily

A responsabilidade é inerente ao próprio termo “influenciador”, além de proporcional ao número de seguidores. No mesmo fim de semana, mensagens diametralmente opostas invadiram as redes sociais. Em reação ao incumprimento das normas por parte de algumas pessoas, Helena Coelho, que soma mais de 565 mil seguidores no Instagram anunciou publicamente a decisão de “deixar de seguir um sem número de pessoas hipócritas, egoístas e irresponsáveis que teimam que festas são mais importantes do que vidas humanas”.

“Diria que um influenciador tem quase um contrato com o público, que prevê direitos mas também obrigações. Nesse sentido, deve ter o máximo de consciência sobre o seu discurso nas redes sociais, tendo em conta o momento e o contexto em que se encontra e pesando bem na repercussão que as suas publicações poderão ter na comunidade”, defende Inês Mendes da Silva, publicista e CEO da Notable, consultora que representa alguns influenciadores digitais portugueses, entre outras figuras públicas.

Fala em “emoções à flor da pele” como forma de legitimar “reações mais empolgadas em função deste stress emocional”. Contudo, atrás do número que indica a quantidade de seguidores estão milhares de pessoas “muito permeáveis, sobretudo numa altura em que estamos em casa e procuramos as redes sociais como fonte de informação e entretenimento”, explica ainda Mendes da Silva, responsável pela assessoria de Cristina Ferreira e Rita Pereira, duas das três mulheres mais seguidas no Instagram em Portugal.

“Desde o início da pandemia que disponibilizámos os nossos recursos — as nossas personalidades e as suas redes sociais — à DGS. Todos os nossos ‘notáveis’ acederam a publicar textos, vídeos e imagens de consciencialização à população”, recorda ao Observador. O meio privilegia a comunicação no imediato, na opinião de Inês, o que pode dar aso a uma comunicação irrefletida. “Em todo o caso, em muitas situações, antes de apontarmos o dedo nas redes sociais, devemos fazer um exercício de consciência, perceber se também nós já nos pusemos em situações menos razoáveis e aprender com isso”, conclui.

Ajudar ou atrapalhar? O poder dos influenciadores digitais

São jovens, bem-sucedidos e têm uma extensa audiência de seguidores permeável às suas opiniões e tomadas de posição. Por todo o mundo, em vários momentos da pandemia de Covid-19, os influenciadores digitais e o seu alcance foram usados como ferramentas estatais para espalhar a mensagem: fosse esta ficar em casa, lavar as mãos de forma eficiente, evitar ajuntamentos ou usar máscara.

Em Portugal, a Direção-Geral da Saúde iniciou a estratégia de comunicação com recurso a figuras públicas e influenciadores digitais no primeiro período de confinamento, em março. David Carreira e Sea3p0 estiveram entre as figuras públicas mobilizadas para apelar ao cumprimento das normas de segurança sanitária. “A estratégia passa, naturalmente, por  continuar a integrar figuras públicas e influencers, sempre que estrategicamente for oportuno e tendo em conta os públicos alvo definidos como prioritários”, esclarece a DGS ao Observador.

COVID-19 | David Carreira

"Estar distante é estar bem. É proteger os teus amigos e a tua família. Lembra-te que o vírus continua a circular. Ajuda a travar novos casos de doença". Este é um conselho do David Carreira e é também #umconselhodaDGS. Não facilites. Continua a cumprir as medidas de prevenção da COVID-19. Cuida de ti, cuida de todos!

Posted by Direção-Geral da Saúde on Friday, July 3, 2020

Em fases mais críticas, foram precisamente as camadas mais jovens as que mais resistência ofereceram às restrições impostas (mas necessárias) para conter o avanço de um vírus que, nas últimas seis semanas, matou mais pessoas do que durante os primeiros seis meses da pandemia. Não espanta, por isso, que alguns países tenham visto em figuras públicas amplamente seguidas nas redes sociais para apelar ao cumprimento de medidas de restrição destinadas a conter a propagação do vírus.

Foi o caso de Famke Louise, cantora e modelo de 21 anos, com mais de um milhão de seguidores no Instagram — uma estrela digital, portanto. Na primavera de 2020, o Governo holandês reuniu uma lista de figuras públicas às quais pagou para que fossem porta-vozes das medidas adotadas. Louise apelou na altura ao cumprimento do distanciamento social.

Em agosto, foi o Reino Unido a pagar a um conjunto de vedetas das redes sociais para espalhar a mensagem, desta vez de incentivo à utilização do serviço de testagem NHS Test and Trace. Entre a lista estiveram alguma estrelas do reality show “Love Island”  — Shaughna Phillips, Josh Denzel e Chris Hughes — e um porta-voz do Governo chegou mesmo a dizer que o recurso a estes difusores de informação tinha permitido alcançar sete milhões de pessoas. Na altura, a imprensa britânica estimou que cada post destes influenciadores custasse ao Governo britânico entre 5.000 a 10.000 libras, ou seja, entre 5.500 e 11.000 euros, no câmbio então em vigor.

A longo prazo, a dedicação de alguns influenciadores digitais à causa esmoreceu. Foi o que aconteceu precisamente com Famke Louise. Em setembro, a jovem holandesa publicava um vídeo no Instagram onde se demarcava da mensagem do Governo — que continuava a apelar às pessoas para que ficassem em casa. “Libertem o povo”, conclui na publicação. Na verdade, a posição assumida por Famke fez parte de um movimento chamado de “Virus Truth”, que contou com o apoio de outras figuras públicas holandesas.

Influencer toma vacina para Covid-19 e vai para uma festa, após Indonésia considerar influenciadores prioritários

Aos statements juntam-se  mais exemplos e até o incumprimento das restrições vigentes. Em agosto, Bryce Hall e Blake Gray, duas estrelas do TikTok, foram presentes à justiça, acusados de darem festas com dezenas de convidados em Los Angeles. Mike Feuer, procurador da cidade de Los Angeles, recomendou aos dois rapazes que se tornassem referências de bom comportamento, em vez de “violarem descaradamente a lei e de postarem vídeos a mostrá-lo”.

Mais recentemente, chegou da Indonésia o relato de outro mau exemplo amplificado pelas redes sociais. No país onde os influenciadores foram integrados na lista de cidadãos prioritários para receber a vacina, com o objetivo de convencer a população de que a vacinação é segura. Com cerca de 50 milhões de seguidores no Instagram, Raffi Ahmad, um dos selecionados, foi apanhado a participar numa festa depois da primeira toma, que não garante a imunização.

Artigo atualizado no dia 19 de janeiro, às 11h40.