O conteúdo e a forma como o Governo e a Direção-Geral da Saúde (DGS) estão a comunicar sobre a Covid-19 no quadro do atual agravamento da pandemia em Portugal devem mudar, defendem especialistas de comunicação em saúde.

Perante os máximos sistemáticos de casos, internamentos e óbitos em 2021, a comunicação sobre a crise sanitária passou, essencialmente, a ser feita nas últimas semanas pela ministra da Saúde, Marta Temido, e pelo primeiro-ministro, António Costa. Simultaneamente, no pior pico desde o início da pandemia em março de 2020, a última conferência de imprensa da DGS foi em 5 de janeiro, depois de terem sido diárias durante a primeira vaga.

Rui Gaspar, professor na Universidade Católica e psicólogo com especialidade em comunicação de crise, que tem igualmente prestado consultoria à DGS, disse à Lusa que este ‘interregno’ terá na base “uma reformulação das mensagens”, mas reconhece também que o aumento da “comunicação do governo, de alguma forma, se sobrepõe a qualquer mensagem das autoridades de saúde” nesta fase.

“Deveríamos ter dois tipos complementares de comunicação, uma não deveria anular a outra. A comunicação da DGS deveria ser mais sobre como as pessoas devem manter os seus comportamentos”, realça, numa visão sustentada também por Margarida Pinto da Fonseca, gestora da consultora de comunicação S Consulting.

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“As conferências da DGS seriam muito importantes agora, mas se assumissem outro modelo. Estamos anestesiados com números”, disse à Lusa.

Para a responsável desta empresa especializada na área da comunicação em saúde, as conferências de imprensa já têm um impacto pouco expressivo nos comportamentos das pessoas neste momento da pandemia, apontando o foco para “as mensagens que chegam de quem está na linha da frente” do combate à doença.

“Os meios de comunicação social convencionais e as mensagens de apelo dos dirigentes bateram na parede. Não se pode dizer que os portugueses estejam mal informados, a informação está por todo o lado, os números são claros, e mesmo quem está sensibilizado para a dimensão deste problema incumpriu e continua a incumprir”, observa Margarida Pinto da Fonseca.

Andreia Garcia, diretora da consultora de comunicação em saúde Miligrama e professora na Escola Superior de Comunicação Social, em Lisboa, alerta que “as mensagens continuam a ser as mesmas de há uns meses” e que é urgente proceder a uma mudança na comunicação sobre a pandemia.

Já todos sabemos o que fazer para evitar o contágio. Temos, agora, de incentivar as pessoas a aprovar esses comportamentos, a praticá-los e a recomendar que outros façam o mesmo. A estratégia de comunicação deve passar pela mudança das mensagens transmitidas. Mais do que incutir o medo ou a culpa, temos de reforçar a esperança e a união”, defende.

No entanto, para se chegar a essa mudança e a efeitos visíveis no comportamento dos cidadãos, Rui Gaspar assevera que é crucial não olhar apenas pela visão dos epidemiologistas.

“A forma como os especialistas avaliam o risco não é a mesma das pessoas comuns. Enquanto os técnicos se baseiam nos critérios de transmissão ou letalidade da doença, as pessoas concentram-se no esforço que estão a ter, no perigo económico e na incerteza”, nota, acrescentando: “Temos de tentar que haja um ponto comum de acordo entre especialistas e cidadãos, de ter uma melhor compreensão das pessoas e não assumir logo à partida que são culpadas do que está a acontecer. Antes de culpabilizar, temos de compreender”.

Margarida Pinto da Fonseca destaca a necessidade de compatibilizar os alertas à população com uma palavra de confiança e responsabilização, ao considerar que “a culpabilidade ou os efeitos das nossas decisões” não são da exclusiva responsabilidade de quem toma decisões.

Estaríamos a dizer que precisamos de um estado paternalista que nos dita o que deveríamos fazer, quando estamos mais do que aptos a fazê-lo de forma consciente, responsável e autónoma. Esperamos que o nosso governo nos diga a verdade, nos explique a intenção e a origem das decisões, nos ajude a orientar a nossa conduta, mas não podemos esperar que faça por nós o que todos conseguimos fazer sozinhos: proteger-nos uns aos outros”, disse.

Salientando a premência de “conquistar e manter a confiança”, Andreia Garcia não deixa de criticar os últimos meses de “mensagens erráticas provenientes dos governantes”, como o “baixar a guarda na época natalícia” ou o “excesso de confiança” gerado com a chegada da vacina e lamenta também a “incerteza” em torno das medidas anunciadas para o confinamento e a contradição entre o dever de recolhimento e as imagens de “aglomerados de pessoas a participar nas iniciativas da campanha” para as eleições presidenciais.

Rui Gaspar — que fez parte do grupo de trabalho responsável pelo documento da DGS ‘Princípios orientadores para comunicação de riscos e crise baseados na perceção de risco’ — diz que para rebater o sentimento de dessensibilização, é necessário “deixar de comunicar números e comunicar pessoas”, acentuando os efeitos das mortes na comunidade.

Andreia Garcia partilha da ideia de “humanizar a comunicação” em torno da pandemia. “Dizer a um jovem que se não se proteger pode contrair a Covid-19 não tem o mesmo efeito que dizer-lhe que se apanhar a doença pode infetar a sua mãe e que esta pode morrer. Mais do que a responsabilização individual é necessário apelar à solidariedade social”, afirma.

“O que pode ajudar em termos de eficácia de comunicação é a segmentação das mensagens e dos canais. Assistimos a um exemplo disso no direto no Instagram de Bruno Nogueira [artista] em que convidou o médico intensivista Gustavo Carona, do Hospital Pedro Hispano. Estiveram quase 90.000 pessoas a ouvir uma mensagem que, tenho a certeza, mudou mais comportamentos do que muitas conferências de imprensa, junto de um target a que os políticos ou os telejornais não costumam chegar”, conclui Margarida Pinto da Fonseca.

Portugal registou hoje 221 mortes relacionadas com a Covid-19, o maior número de óbitos em 24 horas desde o início da pandemia, e 13.544 casos de infeção com o novo coronavírus, segundo a DGS.

O boletim revela também que estão internadas 5.630 pessoas, mais 137 do que na quarta-feira, das quais 702 em unidades de cuidados intensivos, ou seja, mais 21, dois valores que também representam novos máximos da fase pandémica.

Desde o início da pandemia, em março de 2020, Portugal já registou 9.686 mortes associadas àCovid-19 e 595.149 infeções pelo vírus SARS-CoV-2.