Daniel Sloss quer que o espectador acredite em coisas que não são verdade. Quer que quem o vê e ouve pense que o comediante teve uma vida normal, abraçada por excelentes pais que proporcionaram condições para ter uma carreira artística. Ele quer que o espectador pense que isso é verdade, que acredite que isso é a única verdade, para depois lhe tirar o tapete. É esse um dos segredos de “Dark”, o especial de comédia do humorista escocês que está disponível há algum tempo na Netflix – a par de “Jigsaw” –, que o tornou ainda mais popular. Mas a notícia não é “Dark”, a notícia é que Daniel Sloss irá regressar a Portugal, a 1 e 2 de setembro de 2021 (Tivoli BBVA, Lisboa, bilhetes entre os 25 e os 40 euros) com um novo espectáculo, “Hubris”.

É o seu décimo primeiro espectáculo a solo. Um número impressionante para alguém com apenas trinta anos. Daniel Sloss quis, desde o início da carreira, ter um espectáculo novo todos os anos. Começou cedo – lá está, grande ajuda dos pais – e cedo também ganhou relevância graças ao sucesso nas suas participações no “Edinburgh Festival Fringe” e a presenças regulares na televisão norte-americana, especialmente em “Conan”. Sabe o jogo todo mas, sobretudo, sabe jogá-lo.

[um excerto do espectáculo “Dark”:]

Reconhece que Bo Burnham é o melhor comediante da sua geração. Mas, ao contrário de Bo Burnham, não precisa de artifícios em palco para comunicar com o espectador. Não necessita de jogar com a constante falta de perda de atenção do espectador do presente para manter a concentração com coisas novas a cada minuto. Não, nesse sentido Daniel Sloss é bem tradicional. Nos seus especiais para televisão (“Dark”, “Jigsaw” e, mais recentemente, “X”), conta uma história que vai do início até ao fim do espectáculo, de forma impercetível e natural. Faz lembrar o Dave Chappelle do presente – sem a casualidade da experiência. O Dave Chappelle para quem fez primeiras partes no início de 2018. E, tal como Chappelle, não lhe custa falar de temas atuais com uma lucidez impressionante para a idade que tem.

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Sloss faz parte de uma nova geração da comédia. Bo Burnham está na frente, o escocês está ligeiramente atrás. Tem perfeita consciência do mundo em que vive e de como chegar à sua audiência. Os seus espectáculos são como sessões de terapia para o próprio – e consequentemente para o grupo – em que consegue expurgar a experiência pessoal para exemplos que qualquer um consegue imaginar como uma realidade para si próprio. Quando aborda a deficiência em “Dark”, trabalha o sentimento de culpa do outro com propriedade: e, concorde-se ou não, arruma a discussão a seu favor. Daniel Sloss sabe como ganhar a razão porque não receia desmontar a sua fragilidade em palco. Não é a fragilidade-de-consultório a que o stand-up norte-americano nos habituou durante décadas, é outra. Não passa por vidas mal vividas, mas como tornar qualquer aspeto do viver num tema de debate. Sloss é primoroso nisso.

[Daniel Sloss no programa de Conan O’Brien:]

Como também é bastante habilidoso a vender-se. Tem um bom agente. Antes de conseguir um negócio com a Netflix, gravou “Jigsaw” com os seus próprios meios – seguindo o standard da Netflix – num dos últimos espectáculos dessa digressão, para ter algo pronto caso o negócio fosse para a frente. Assim, a Netflix teria algo logo disponível. E, graças a isso, quando chegou ao gigante do streaming não surgiu com um especial de comédia, mas com dois, uma dupla que de certa forma se complementa e deixa o espectador refém da comédia de Daniel Sloss (vale mesmo a pena procurar “X”, que é posterior a “Dark” e “Jigsaw”).

A sua cara de miúdo imberbe torna-o numa espécie de elo perdido entre Macaulay Culkin e Jamie Oliver. É também uma das ferramentas para desarmar quem está do lado de cá – no sofá ou numa audiência. A expectativa previsível é a de que alguém com uma cara tão simpática não vai incluir num espectáculo temas sensíveis e que confrontam cada um de nós: não só individualmente, mas também as relações, sobretudo as amorosas (há um momento fantástico em “Jigsaw” sobre isso). Contudo, acontece. Desarma sem nunca perder a linha de comunicação com o espectador e, mesmo que o ofenda ou o deixe mais sensível, torna essa comunicação mais presente. Porque em nenhum momento Daniel Sloss quer perder a audiência, mas quer que nos afundemos na cadeira de vergonha e que continuemos a cavar esse buraco ao longo do seu stand-up. É uma sessão de terapia comunal, inesperada e com a linguagem que se deve aprender a falar no tempo presente. E “Hubris” está aí ao virar da esquina. Agora é só esperar que a pandemia também não nos lixe setembro.

Artigo atualizado às 17h43 com a data extra entretanto anunciada