Os três grandes compositores nascidos no prodigioso ano de 1685 tinham em comum serem virtuosos do teclado, mas enquanto Johann Sebastian Bach deixou extensa e variada produção neste domínio e a parte mais relevante do legado de Domenico Scarlatti está nas suas 555 sonatas para cravo, as partituras que George Frideric Handel consagrou ao cravo solo são uma fracção muito minoritária da sua obra. Os testemunhos contemporâneos não deixam lugar para duvidar que Handel tenha sido um formidável executante de cravo e órgão e, segundo uma lenda, durante a estadia de Handel em Itália, em 1706-09, terá disputado um “duelo” com Scarlatti no palácio do cardeal Ottoboni, em Roma, que terá deslumbrado todos os presentes e que terá terminado com o diplomático veredicto de que Handel triunfara no órgão e Scarlatti no cravo (ver Handel: O aluno que em Itália se fez mestre). Já na sua fase londrina, é sabido que um dos principais chamarizes que levava o público a acorrer às oratórias de Handel era a oportunidade de ouvir o músico lançar-se em longas e mirabolantes improvisações no órgão.

“The charming brute” (O bruto encantador), uma caricatura de Handel por Joseph Goupy, 1754

Uma invulgar facilidade na improvisação pode diminuir a apetência para a composição (para quê perder tempo a cinzelar uma peça, anotá-la e memorizá-la se se pode extrair uma do ar sempre que necessário?) e há quem sugira que Scarlatti só acedeu a verter as suas ideias no papel como contrapartida pelo pagamento de dívidas de jogo (ver Bem-vindo, Sr. Escarlate: Há 300 anos, uma estrela da música instalou-se em Lisboa).

No caso de Handel, a motivação para só aos 35 anos ter decidido publicar a sua primeira colecção de peças para cravo parece ter sido a pirataria: quando viajou pela Europa para contratar cantores para a recém-fundada Royal Academy of Music, teve conhecimento de que a casa Roger, de Amesterdão, se preparava para imprimir uma colecção de obras para cravo de sua autoria, tirando partido das liberais leis dos Países Baixos no domínio dos direitos de autor (os regimes tributários generosos que hoje aliciam as grandes empresas a domiciliarem-se fiscalmente nos Países Baixos inserem-se numa antiga tradição). Foi assim que Handel tomou um conjunto de peças para os seus alunos de cravo (possivelmente no período 1717-19, quando estivera ao serviço do Duque de Chandos, em Cannons) e que até então tinham tido circulação restrita sob a forma de manuscrito e as organizou em oito suítes, publicadas em Londres em 1720 com o título Suites de pièces pour le clavecin (em francês no original).

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Handel por Philipe Mercier, c.1730

Além desta colecção, publicada pelo próprio compositor, o editor londrino Walsh fez surgir, em 1733, à revelia do compositor, uma colecção, menos homogénea, com mais nove suites, compilando peças de diversas épocas, o que explica a inclusão de algumas peças antigas e menos refinadas (as balizas sugeridas para as composições originais vão de 1703 a 1720), a que se seguiu, dois anos depois, pelo filho de Walsh e com autorização e supervisão de Handel, a colecção Six fugues or voluntarys for the organ or harpsichord. Não contando com algumas dezenas de peças soltas, predominantemente de curta duração e incluindo composições de atribuição duvidosa e arranjos, a obra relevante de Handel para o teclado resume-se a estas três colecções. Não só é um corpus pouco imponente, quando comparado com os de Bach e Scarlatti, como não tem merecido a atenção da maioria dos cravistas e pianistas de primeiro plano. Até alguns mestres da interpretação historicamente informada, responsáveis pelo resgate de tanta obra-prima olvidada, relegaram as obras para tecla de Handel para segundo plano – foi o caso de Gustav Leonhardt, que não só não as adoptou para o seu vasto repertório, como desincentivava os seus alunos de cravo de as tocar.

Não é, pois, de estranhar que um dos mais brilhantes discípulos de Leonhardt, o francês Pierre Hantaï (n.1964), também se tenha mantido, durante muito tempo, arredado de Handel, embora nos tenha oferecido magistrais gravações de Bach e sete electrizantes volumes de sonatas de Scarlatti (um na Astrée e seis na Mirare) e só 30 anos após a sua estreia em disco apresente a sua primeira incursão em Handel, com as Suítes n.º 1 a 4 da colecção de 1720 (HWV.426-29) e a fuga n.º 6 da colecção de 1735 (HWV.610), recorrendo a um cravo construído em 2004 por Jonte Knif a partir de modelos alemães do século XVIII e que é soberbamente captado por Nicolas Bartholomée e Céline Grangey.

[I andamento (Praeludium) da Suíte n.º 3]

A leitura de Handel por Hantaï não produz o efeito imediato de “choque” dos discos que o cravista dedicou a Scarlatti, mas não deixa de trazer novas perspectivas sobre a obra e estar plena de motivos de interesse. É disso exemplo o Praeludium da Suíte n.º 1, com um feeling tão livre e solto que soa como se tivesse sido improvisado no momento da gravação.

[I andamento (Praeludium) da Suíte n.º 1]

Hantaï tanto é capaz de soar terno e delicado na Allemande da Suite n.º 1, como de imprimir a alguns andamentos um vigor que não costuma ser empregue em Handel e tem afinidades com a sua abordagem a Scarlatti: é o caso da Gigue da Suíte n.º 1 e do Presto da Suíte n.º 3. A vivacidade, a clareza da articulação e a ornamentação criteriosa de Hantaï fazem com que a ideia de que as Suítes para cravo de Handel são obras menores fique definitivamente posta de lado.

[V andamento (Presto) da Suíte n.º 3]

Embora tenha intitulado estas obras como “Suites”, Handel não se conformou à estrutura formal usualmente associada a esta designação, que prevê que uma Abertura ou Prelúdio seja seguida de quatro ou cinco danças estilizadas: nalguns andamentos as danças dão lugar a fugas e a Suíte n.º 2 não tem uma única dança, sendo constituída por cinco andamentos alternando as indicações Adagio e Allegro; a Suíte n.º 3 inclui uma Ária com cinco variações, que também é estranha ao padrão da suíte – as variações são de natureza muito diversa e a quinta é um fogo-de-artifício virtuosístico, em que Hantaï nos dá uma ideia do que levaria os melómanos londrinos a não perder as exibições de Handel no teclado. Resta esperar que Hantaï não se demore a gravar as restantes quatro suítes da colecção de 1720.

[V andamento (Ária com cinco variações) da Suíte n.º 3; a variação n.º 5 (Presto) começa aos 8’25]