Quando pensamos em filmes que envolvem arqueologia, vêm-nos logo à cabeça histórias de aventuras, ação ou sobrenaturais envolvendo cidades perdidas no deserto ou na selva, descobertas de túmulos ancestrais em pirâmides e maldições de faraós, ataques de tribos desconhecidas, peripécias à maneira de Indiana Jones ou enredos de crime e mistério em escavações, como tão bem os sabia urdir Agatha Christie. Ora “A Grande Escavação”, do inglês Simon Stone, adaptado de um livro de John Preston pela argumentista Moira Buffini (“Jane Eyre”) e que acaba de estrear na Netflix, não podia estar mais longe de tudo isto.

[Veja o “trailer” de “A Grande Escavação”:]

“A Grande Escavação” é a dramatização plácida e minuciosa de uma das principais descobertas arqueológicas do século XX na Europa, feita em 1938. A de um navio fúnebre anglo-saxónico do século VI carregado com um tesouro, em Sutton Hoo, no Suffolk, Inglaterra. O achado estava num dos muitos montículos da propriedade de Lady Edith Pretty, a viúva de um militar e mãe de um rapazinho que, pressentindo que podia haver algo de muito antigo e precioso enterrado neles, contratou Basil Brown, um escavador e arqueólogo autodidata, que encontrou o navio.

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[Veja uma entrevista com os atores e o realizador:]

O filme assenta em duas coisas em que os ingleses são exímios. Uma é a reconstituição de época cuidadosamente verista em todos os seus aspetos – aqui, a Inglaterra à beira do eclodir da II Guerra Mundial – e a outra é o subentendido, a contenção, o “understatement”, omnipresente na narrativa, nas palavras e na manifestação dos sentimentos. No centro da história encontra-se a lacónica mas forte relação entre Lady Edith (excelente Carey Mulligan, a interpretar uma mulher mais velha do é) e Basil Brown (Ralph Fiennes, que “desaparece” na personagem num sóbrio e estupendo papel de composição), que nunca é romântica mas sim de identificação emocional e sintonia mental.

[Veja uma sequência do filme:]

Em redor dela geram-se conflitos (o confronto com os representantes do Museu Britânico que se querem apropriar do achado para a Coroa, com o veterano Ken Stott a destacar-se no impaciente e patusco Dr. Phillips, em fricção constante com o taciturno Basil e a disparar ordens em todas as direções) e vários subenredos. Como o da amizade entre o azougado filho de Lady Edith e Basil, a doença desta ou a atração entre Margaret Pigott, a jovem arqueóloga recém-casada interpretada por Lily James (a personagem é avó do autor do livro em que o filme se baseia) e o primo da aristocrata, prestes a ser chamado para a RAF.

A angústia e a apreensão geral perante o conflito iminente vem misturar-se com o clima de entusiasmo e de tensão em redor do achado, e Simon Stone usa-as para frisar, sempre finamente, a ideia da impermanência da vida, o sentido da continuidade humana conferido pela descoberta do milenar navio fúnebre, e como a presença tangível e forte do passado dá alento para encarar o futuro. O experimentado diretor de fotografia Mike Eley encarrega-se de dar uma suave e melancólica aura pastoral a “A Grande Escavação”, que parece em tudo, do tema ao tratamento da história e das personagens, e à atmosfera geral, um filme deslocado no tempo, feito nos anos 70 ou 80 e não agora. E não se lhe podia fazer um melhor elogio.

“A Grande Escavação” está disponível na Netflix