“O tamanho não importa” não é maneira de começar uma crónica de gabarito. Mas “gabarito”, termo do tempo do Betamax, também não é palavra que se use na era do streaming e, na verdade, o tamanho não importa é mesmo o que queremos dizer. Não no mundo dos conteúdos. Israel, país com pouco mais de metade da população de Portugal e um quarto do tamanho, é dos mais interessantes exportadores mundiais de conteúdos televisivos. Dirão: é o poder do lobby judeu nos estúdios americanos. E nós respondemos: não é mais poderoso do que o lobby do produtor americano sem pachorra para ler legendas – e se precisamos de legendas para acompanhar uma série falada em hebraico.
Suspendam o cinismo: Israel cria e vende grandes histórias televisivas por isso, porque são grandes histórias – e as grandes histórias são como os diamantes: para sempre, apenas ligeiramente mais baratas. As premiadas “Homeland”, com Claire Danes, e “In Treatment”, com Gabriel Byrne, (que, por cá, deu “Terapia”, com Virgílio Castelo), por exemplo, são adaptações dos originais israelitas “Hatufim”, de Gideon Raff, e “BeTipul”, de Hagai Levi, Ori Sivam e Nir Bergman, respetivamente. Com “Fauda”, foi-se ainda mais longe: diretamente à fonte. Uma série sobre algo tão local e complexo como o conflito israelo-palestiniano, levada ao mundo todo pela Netflix, externamente aclamada e internamente acusada de tendenciosa por ambos os lados da contenda – haverá maior garantia de qualidade?
“Losing Alice” é, mais do que a série israelita do momento, uma das séries do momento — ponto. Levada diretamente de Tel Aviv para sua casa pela Apple TV, apostaríamos que virá a ter, também, em breve, versão “americana”, com caras e nomes que vendam mais assinaturas. É um drama familiar, mas também um thriller, mas também uma história sempre pronta a parar para deixar acontecer um momento de pura contemplação. Está cheia de sexo e violência – e, no entanto, ao fim de quatro episódios, ainda não vimos, de facto, qualquer gesto verdadeiramente violento e quanto a sexo, o momento mais tórrido foi o chupar de um dedo do pé. Porque, pelo menos até metade dos oito episódios previstos para a sua primeira temporada, em “Losing Alice”, toda a violência e todo o erotismo são apenas sugeridos, que é a forma mais cruel e talentosa que se conhece de se fazer sentir medo ou desejo.
[o trailer de “Losing Alice”:]
A série começa no momento em que Alice (Ayelet Zurer) tem a vida tão aparentemente perfeita como estagnada. É uma mulher bonita e talentosa, uma argumentista e realizadora bem-sucedida, casada com um igualmente bem-sucedido e famoso ator (David, aliás, Gal Toren), que vive rodeada pela família e pelos olhos de todos, numa casa de revista demasiado transparente. No entanto, atravessa uma crise de confiança como autora, não consegue avançar no guião do seu novo e muito aguardado filme, faz spots publicitários a iogurtes para ser bem paga e não se desafiar muito, acerca-se dos 50 anos lidando com as mudanças no corpo e medindo forças com a competição de mulheres mais jovens pelo marido, que ainda mantém o estatuto e físico de sex symbol e a cara espalhada em cartazes pela cidade. Até que chega Sophie.
“Losing Alice” / “Perder Alice” tem uma personalidade muito própria. Daquelas que se nota melhor em obras escritas e realizadas por uma só pessoa, isto é, em que o argumentista é também o realizador (ou vice-versa, como se prefira dizer). Tudo o que é escrito termina exatamente onde a câmara vai começar a falar. A câmara tem o mesmo ritmo e o mesmo tom das palavras. E essa personalidade é muito marcada e poderosamente feminina, cheio de pequenas e grandes coisas, tensões, desejos, receios, subtextos. É, pois, sem surpresa que descobrimos que é escrita e realizada por uma mulher, Sigal Avin.
Começou pelo teatro, foi para a telenovela criar a premiada “Game of Life”, ganhou uma edição israelita do 48 Hour Film Project e chegou às séries com “Irreversible”, escrita a partir da sua própria experiência de ser mãe pela primeira vez e de como isso muda uma relação. A ABC comprou-a e fez uma versão americana em telefilme com David Schwimmer (“Friends”) e Jessica Knappett (“Drifters”). “That’s Harrassment”, antologia de seis curtas-metragens sobre diferentes formas de assédio sexual, também teve versão israelita e logo outra norte-americana, com Cynthia Nixon (“O Sexo e a Cidade”), Michael Kelly (“House of Cards”) e, de novo, Schwimmer. O próximo projecto de Avin, diremos sem grande risco, já não será em Israel.
O que torna tão apelativa “Losing Alice” é, provavelmente, a forma como se movimenta facilmente entre fronteiras. Fronteiras entre géneros, entre temas, até entre sexualidades. O carácter fluído torna-a, simultaneamente, refrescante e imprevisível: após quase quatro horas de história, mantém-se caminhando na linha, mas ela está suspensa umas dezenas de metros acima do chão. É um arame, o fio da navalha. A protagonista é, realmente, Alice, a notável Ayelet Zurer, 51 anos, que conhecemos entre outros de “Munique”, de Steven Spielberg, “Anjos e Demónios”, de Ron Howard, ou “Homem de Aço”, de Zack Snyder, ou Sophie (Lihi Kornowski, 28 anos), a jovem argumentista e femme fatale (um combo invulgar, admitamos. Não é habitualmente na writer’s room que se costumam encontrar, enfim, as maiores bombas sexuais…), que traz o medo e o desejo. O perigo e a novidade. A ameaça de tirar o tapete à vida perfeita de Alice e, simultaneamente, de a trazer de volta ao jogo, ao risco, aos sítios onde nos voltamos a sentir vivos.
“Losing Alice” é um crossover entre drama familiar e “Atracção Fatal”, que trata com mestria pequenos temas intangíveis dos dias como o equilíbrio entre criatividade e autodestruição, família ou carreira, realização financeira ou artística, os limites da fidelidade ou da traição, os conflitos de egos, beleza e decadência, ciúme, amor próprio e outras zonas cinzentas do nosso descontentamento. A descobrir e confirmar na segunda metade da primeira temporada.
Alexandre Borges é escritor e argumentista