A Sociedade Harmonia Eborense, associação sem fins lucrativos que é um dos mais emblemáticos espaço culturais de Évora, vai fazer 172 anos no próximo dia 23 de abril. Porque nessa data corre o risco de ter as portas fechadas de forma definitiva, a SHE, como também é conhecida, lançou uma campanha de crowdfunding na esperança que sirva de balão de oxigénio até a mais premente das dificuldades — a pandemia — estabilizar num nível que permita o funcionamento da casa. Até ao momento, e em menos de uma semana, a campanha já reuniu cerca de 8.500 euros.

A Sociedade suspendeu atividade em março do ano passado, e voltou a abrir em julho, mantendo alguma programação cultural, de exposições a exibições de filmes, com restrições de lotação (40 pessoas). Tudo num espírito voluntário, entre artistas e sócios, que permitiu resistir apesar das perdas financeiras mensais a rondar os 2500 euros. O problema foi mesmo o segundo confinamento imposto no início deste ano (como aliás tem acontecido em espaços culturais e de diversão noturna em todo o país): a renda alta do aluguer do espaço, as contas, a segurança social e o ordenado do único funcionário que recebe salário tornaram-se responsabilidades quase fatais para a sobrevivência da sociedade.

“Pensámos que isto ia melhorar mas não, a situação piorou. Podíamos ter reduzido a renda, mas isso seria acumular dívida. Além disso, mesmo estando fechados, continuamos a ter de pagar aquilo que é habitual. Se não fosse a campanha de crowdfunding que lançámos, não teríamos dinheiro para nos mantermos abertos. Teríamos de entregar a casa”, conta Pablo Daniel Vidal, presidente da sociedade desde 2019.

Pessoal, esta é a publicação que nunca esperámos ter de escrever. O contexto de pandemia de SARS-COV-2 impôs um…

Posted by Sociedade Harmonia Eborense on Sunday, January 31, 2021

Essa campanha, lançada pela SHE esta semana através da plataforma gofundme, partiu da direção a que Pablo Vidal preside, ainda que já tivesse sido sugerida pelos sócios (os temporários, que pagam 1,5 euros por mês, e os permanentes, que pagam 3 euros). São entre 500 a 600 efetivos com quotas em dia, 10 mil sócios temporários e mais de 1400 com quotas em atraso. Não chega para o objetivo, mas isso não impede que seja alcançado, olhando para os números de donativos que estão a crescer.

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Já perto de atingir os 8,5 mil euros, o argentino, que aterrou em Évora em 2001 para trabalhar em musicoterapia, demonstra que está confiante que o objetivo final dos 15 mil euros pedidos seja atingido. E, a partir daí, consegue-se uma folga durante mais 6 meses, mesmo sem qualquer atividade.

“Estamos confiantes, sim, ficámos surpreendidos com as mensagens e com o facto de conseguirmos juntar estes valor em dois, três dias. Recebemos muitas mensagens de sócios a pedir que não fechássemos ou a demonstrar tristeza. Até me disseram que tinham conhecido a pessoa com quem vivem na Sociedade”, diz Pablo Vidal.

Ao ver algumas das mensagens e partilhas nas redes sociais, percebe-se que este espaço é mais do que um polo cultural instalado no mesmo edifício desde 1902. A SHE começou por ser frequentada pela burguesia no século XIX, com disputas liberais e absolutistas como pano de fundo, mas cedo se transformou num lugar de encontros boémios, entre novos e velhos, estudantes, gente da terra e rampa de lançamento para novos artistas. Por ano, chegavam aos 140 eventos. Uma verdadeira “casa aberta”, que passou a ter o estatuto de Instituição de Utilidade Pública em 2015 e foi, três anos depois, reconhecida como a primeira entidade de Interesse Histórico e Cultural ou Social local de Évora.

Mas essas são as medalhas de reconhecimento que a Sociedade foi colecionando, por ser um local onde qualquer sócio podia fazer a sua proposta cultural. E as pessoas? Basta olhar para algumas das mensagens deixadas por quem fez o seu donativo — dos 5 aos 300 euros — para perceber o que está em causa com o possível encerramento.

“A SHE é mais do que um espaço que compõe a nossa cidade, faz parte de todos aqueles que a esta cidade podem chamar de casa. Faz parte de todos nós, da nossa história e da nossa cultura. Está na altura de dar de volta, assim e só assim, fará parte do nosso futuro”, escreve um dos doadores.

Quanto à parte artística, Pablo Vidal guarda muitas memórias, até como músico, já que quando atravessou o Atlântico para largar um país em crise, formou a banda Payasos Dopados, de punk-rock e reggae, que se iniciou nos palcos precisamente na SHE. O agora presidente acabou por tratar do visto, da residência e da nacionalidade.

A partir de 2003, Pablo Vidal começou a frequentar este espaço com maior regularidade, tornando-se voluntário e acabando na direção. “Tocámos várias vezes aqui, ensaiávamos em Badajoz. Comecei a criar essa ligação, fiz amigos e fui voluntário. Nos últimos 20 anos esta casa tem sido uma porta para a música, passaram muitas bandas por aqui, desde os Dead Combo a artistas eborenses a emergir, como os Bicho do Mato”, diz. Pessoas, música, filmes, exposições, memórias, copos, tudo junto num espaço que a pandemia mandou parar.

Lembra Vidal que é a música que tem escrito as páginas mais ricas deste sítio, pelo menos para o atual presidente. Até porque são muitos os concertos que o presidente da SHE não consegue esquecer, em especial um: Parkinsons em 2017, durante o evento Super Bock Super Nova, que andou pelo país com várias bandas. “A sala estava cheia de gente, tudo a saltar e a dançar. Hoje seria impossível”, recorda, referindo-se a um tempo em que a programação da Sociedade juntava mais de 300 pessoas, só aos fins de semana.

Pablo Vidal mantém a confiança de que vai ser possível não dar esta história por terminada. Mesmo com alguns percalços, como quando a ASAE encerrou as instalações, obrigando a sociedade a uma restruturação dos seus sócios e exigindo o cumprimento de um plano de segurança e de normas. Desde então, nunca mais parou. Olhando para o passado, percebe-se o porquê: “A SHE mantém-se pela força do voluntariado, se fosse privado, não estava aberto, um empresário não pode estar a perder dinheiro ou estar fechado. Mas aqui a ideia não é ganhar dinheiro, é dinamizar a cultura”, finaliza.