Reza a mitologia da passagem de tempo nas redes sociais que o que é a polémica du jour numa segunda-feira terá desaparecido do mapa lá para quinta. Vivemos num zapping de links, manchetes mais ou menos contextualizadas, partilhas, dos quais ao fim de meses, anos, pouca areia fica. Talvez venha daí, em parte, o sucesso retumbante de tantas séries documentais, género que saiu de festivais de cinema de nicho para abraçar os tops de visionamentos da Geração Streaming. A necessidade de nos demorarmos nas coisas, de as esmiuçarmos. E, claro, também serve de uma espécie de antibiótico para essa maleita contemporânea chamada FOMO (Fear Of Missing Out): “Como é que me escapou esta história incrível que até esteve nas notícias?”.
O caso real relatado nos quatro episódios (equivalentes a outras tantas horas) de “The Lady And The Deal”, estreado agora por cá na HBO, é tão extraordinário e foi tão polémico nos anos 70 que custa a crer que hoje em dia seja virtualmente desconhecido. É uma história que tem tudo: crime, intriga, invenções mirabolantes, mudanças de identidade, capangas da máfia, momentos épicos de tribunal e direitos LGBT. Acontece tanto logo no primeiro episódio que chegamos a temer que os restantes andem ali a marcar passo. Não acontece, felizmente, mas preparem-se para um ponto de partida entre o mirabolante e o fascinante, como aliás já nos tinham habituado os produtores Duplass Brothers (os mesmos de “Wild Wild Country”, talvez um dos melhores e mais empolgantes documentários de sempre).
[o trailer de “The Lady and The Dale”:]
Durante a crise dos combustíveis, uma cativante e empreendedora mulher chamada Liz Carmichael declara guerra às grandes empresas automobilistas ao afirmar poder produzir o Dale, um carro de apenas três rodas, barato e com um consumo muito inferior ao da concorrência. Só que esse carro nunca existe efetivamente, sugando recursos a vários investidores e levando a uma gigantesca fraude. Ao investigarem o sucedido, um canal de notícias descobre porque ninguém tinha ouvido alguma vez falar de Carmichael – é porque se trata de uma mulher transgénero, que até há uns anos era um procurado vigarista chamado Jerry Dean Michael. E é aqui que aquilo que parecia mais um “crime doc”, como tantos que têm sido feitos, dá um salto mortal encarpado.
Há tantos enredos dignos de atenção em “The Lady And The Deal” que o espectador mal sabe para onde se virar. Para acautelar essa sensação, o documentário acaba por estar dividido em quatro ângulos, um por episódio: quem era Jerry Dean Michael, o que era o Dale, como foi a ida a tribunal e o que sucedeu depois disso (com especial enfoque no modo como os media olhavam para uma mulher trans na altura). Sem tomar partidos óbvios, dando margem ao espectador para se apaixonar ou condenar os protagonistas.
Recorrendo à tendência atual de não usar um narrador, o documentário opta por uma edição eficaz de conversas atuais com familiares, ex-colaboradores, jornalistas ou especialistas em questões transgénero, assim como gravações de Liz em entrevistas de época ou numa espécie de diário áudio que a mesma mantinha desde que era Jerry Dean. O maior defeito formal de “The Lady And The Dale” talvez seja a opção por ilustrar tudo com animações de recortes, a fazer lembrar Terry Gilliam nos Monty Python. Esteticamente bem conseguida e feita com mestria, é, porém, muitas vezes desadequada em termos do tom das cenas, que mereciam algo menos cartoonesco.
“The Lady And The Dale” acaba por ser mais sobre a Lady Liz do que sobre o Carro Dale, apesar de ambos terem em comum o fado de serem incapazes de estabelecer fronteiras entre o sonho e a mentira, entre a ambição e a mitomania. Há um carro que ninguém sabe se é tecnicamente possível de fazer e uma mulher cuja legitimidade como transexual é posta em causa não só pelo preconceito, mas pelo passado. Estará um golpista a fugir à polícia interessado em mudar de sexo porque nasceu no corpo errado ou porque precisa de um disfarce? A realidade, já dizia o filósofo, nunca faz tanto sentido como a ficção.
Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa