No tempo em que os deejays eram MCs, U Roy (que morreu esta quinta-feira, 18 de fevereiro, aos 78 anos) foi pioneiro do toasting, o chamado Originator. Marcou gerações com o seu estilo melódico de falar em cima de música e lançou as bases de géneros como dancehall ou hip hop. Claro que, não dominando a linguagem técnica do universo reggae, esta afirmação pode parecer bastante críptica, por isso talvez seja bom traduzir e contextualizar.

No início dos soundsystems, os gigantescos sistemas de som desmontáveis que faziam as festas na Jamaica e estiveram na base da explosão do reggae na década de 60, deejay (DJ) era o nome dado à pessoa que tinha o microfone e falava em cima, ou entre, as músicas escolhidas pelo selector (que só usava um prato de gira discos e precisava de tempo para mudar o disco). Ao canto do deejay, chamava-se toasting, uma forma ritmada de dizer as palavras em cima do riddim (a música instrumental). Com o hip hop, que, de resto, deriva da cultura original de soundsystems, levada para o Bronx, nos Estados Unidos, pelo Jamaicano Kool Herc, manteve-se a fórmula de falar em cima de musica mas, DJ passou a ser a pessoa atrás dos pratos (antes chamada selector) e criou-se um nome novo para quem coloca a palavra: MC ou rapper: não faz toasting, mas rap. Na música jamaicana, o toasting está também na origem do dancehall, um género mais acelerado e digital de reggae, atualmente a sua fórmula de maior sucesso.

U Roy, nascido Ewart Beckford, em Jones Town, na Jamaica, era um verdadeiro artista do toasting, no sentido em que foi dos primeiros a fazê-lo e a criar estilo e escola. Inspirado em personagens que o antecederam, como Count Machuki, começou a fazer toasting no início dos anos 60 com alguns dos principais soundsystems de Kingston, incluindo os de Sir Coxsone Dodd (dono do Studio One) e King Tubby, mas só em 1970 gravou os primeiros singles e também o primeiro álbum, Version Galore.

[ouça “Rasta Ambassador”, na íntegra através do YouTube:]

Por esta altura o seu talento já lhe permitia trabalhar com toda a gente, o que incluiu Lee Scratch Perry, um dos feiticeiros dub jamaicanos. O dub é uma técnica de estúdio desenvolvida na Jamaica no final dos anos 60 que procurava revelar o esqueleto rítmico primário das músicas, sob efeitos especiais de som, sobretudo eco (antes de se inventar o termo dub chamavam-se versions). O dub foi um território particularmente fértil para o toasting de U Roy e não é por acaso que ele trabalhou com os dois principais magos do género: King Tubby e Lee Perry. Ambos, ao vivo ou em estúdio, criaram espaço para o toasting de U Roy se desenvolver e assim chegar mais longe na sua mensagem de espiritualidade e união, pontuada sempre pelos gritinhos que fazem a sua assinatura enquanto vocalista.

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Ao longo de toda a sua carreira, U Roy deu voz à luta dos desfavorecidos, falou das agruras do povo jamaicano, desenraizado de África pela escravatura, falou de esperança e positividade. U Roy, como muitos jamaicanos, tinha convicções rastafari (“religião” afrocêntrica, também entendida como movimento social, surgida na Jamaica nos anos 30 do século passado). O álbum Rasta Ambassador, de 1977, é considerado uma das suas obras mais coesas e importantes e valeu-lhe ficar conhecido como o “Embaixador Rasta”, devido ao forte impacto da mensagem das canções.

Durante os anos 70, U Roy foi gigante. Lançou nove álbuns, centenas de singles, fez digressões pelo Reino Unido e encontrou fãs entre heróis punk como Joe Strummer, dos Clash, que na altura estavam a mergulhar no reggae em busca de inspiração. Não foram os únicos, de um modo geral, o punk sempre gostou de reggae e a new wave também: nos Estados Unidos, em 1980, os Blondie fizeram uma versão de “The Tide Is High”, canção do primeiro álbum de U Roy.

Ao longo dos anos 80, U Roy não teve muita atividade discográfica mas compensou com dedicação ao seu próprio soundsystem (Stur Gav) abrindo espaço e dando voz a uma nova geração de toasters jamaicanos. Nos anos 90, regressou pela mão de Mad Professor, lançando 3 álbuns na sua editora Ariwa. De resto, o último álbum de U Roy, Talking Roots, o 21.º disco, lançado em 2018, tem também selo da editora de Mad Professor, um produtor de dub britânico que trabalhou, por exemplo, com os Massive Attack nos dubs de Protection. Para este ano, está prevista a edição de um novo álbum Gold: The Man Who Invented Rap. Gravado nos 2 últimos anos e produzido por Youth dos Killing Joke, é um disco com revisões de material antigo e novas canções e considerações sobre e o mundo atual, tem participações de nomes clássicos como a dupla Sly & Robbie, Mick Jones dos Clash, ou Shaggy, um dos grandes protagonistas da cena dancehall, e também de nomes novos Santigold ou Ziggy Marley, um dos filhos de Bob.

A importância e influência de U Roy são indiscutíveis, não apenas na música jamaicana, onde esteve na origem da revolução reggae que acompanhou e ajudou a desenvolver, mas também no resto do planeta onde chegou com as vagas de música que a partir dos anos 70 propagaram os ecos da Jamaica mundo fora. Foi uma influência óbvia no hip hop, precedendo-o e oferecendo-lhe um modelo, mas também no dancehall, grime e em muitas derivações da música atual que trabalham o ritmo e mensagem da palavra. Um verdadeiro herói cuja obra vai ecoar durante muito tempo, como um dub interminável.