Ainda há doentes a morreram em macas à espera de serem atendidos nos hospitais portugueses. Há falta de camas também nos serviços de psiquiatria, onde chegam a ser internados menores ao lado de adultos. E há zonas do país onde não existe sequer qualquer estrutura de saúde para dar resposta a quem ali vive.

Os relatos são de três médicas que trabalham em sítios diferentes, mas que esta tarde de quinta-feira se juntaram a outros profissionais e representantes de associações do setor da saúde num seminário online, via Zoom, a convite da ministra da Saúde, Marta Temido. “Um SNS mais resiliente e mais próximo” foi um debate inserido numa série de outros seminários coordenados pela ministra do Estado e da Presidência, Mariana Vieira da Silva, e que pretende estimular a discussão pública sobre o Plano de Recuperação e Resiliência — o documento estratégico que plasma as reformas que devem ser feitas para sair da pandemia através de um financiamento europeu de 13,9 mil milhões de euros.

Deste valor, segundo anunciou Mariana Vieira da Silva logo no arranque do seminário, 463 milhões de euros vão destinar-se aos cuidados de saúde primários, 205 milhões de euros para a rede nacional de cuidados integrados e paliativos,  85 milhões para a conclusão da reforma da saúde mental e 196 milhões de euros para equipamentos dos hospitais do Seixal, Sintra e Lisboa. Há ainda 300 milhões de euros destinados à transição digital na saúde. Mas este dinheiro não entrará logo todo nos cofres do Estado, a sua entrada será faseada de acordo com os planos definidos para estes setores e a sua execução.

Há distritos no país que não têm qualquer resposta para a saúde mental

E foi praticamente nestas áreas que a maior parte dos intervenientes se focou. Joaquina Castanheiro, da Associação Familiarmente, lembrou que há distritos no país que não têm uma única resposta para serviço mental — uma área que deverá agravar após a pandemia, como pareceu ser de comum acordo  ao longo do seminário.

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Mas mesmo onde existe resposta, existem muitas dificuldades. A psiquiatra Jennifer Santos, do Centro Hospitalar de Lisboa Norte, lembrou que na psiquiatria do Hospital de Santa Maria, onde existem 43 camas, chegaram a ter uma dezenas de doentes em macas à espera de vez. Doentes que, ao entrarem pelo serviço de urgência tiram os lugares a doentes com distúrbios alimentares que estão em casa à espera de cama. “E depois quando são internadas, o seu estado de saúde agravou e ficam mais tempo internadas”, relatou.

E não é só aqui. Também do Beatriz Ângelo, em Loures, e do Júlio de Matos, em Lisboa, chegam doentes ao Santa Maria que não têm vaga naqueles hospitais. Chegam igualmente doentes da zona Oeste, onde está previsto abrir um ala psiquiátrica “desde 2015”, segundo lembrou.

Por outro lado, também há dificuldade em encontrar uma resposta para alguns doentes depois da alta. A psiquiatra contou que fez em dezembro um ano que um jovem que tem internado espera um sítio para ir. Falou também de um caso de outro paciente que aguardou oito meses para ir para o Centro de Apoio Social do Pisão.

Por outro lado também será necessário investir na pedopsiquitria. “Jovens de 15/16 anos estão a ser internados com adultos em hospitais gerais”, disse. E no Santa Maria faltam mesmo gabinetes de consulta, espaço para terapias ocupacionais, assim como técnicos para o fazer.

Também Ana Dias, do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, aproveitou para dizer que é crucial separar os menores dos adultos, lembrando que as condições em que se encontra o Hospital Sobral Cid não vão aguentar esperar pelo término das novas instalações previstas e vão ter mesmo que sofrer obras.

O diretor do Programa Nacional de Saúde Mental, Miguel Xavier, deixou bem claro: “Estamos duas décadas atrasados”. “Não podemos continuar com modelos de gestão que têm 30 ou 40 anos. Tem que ser reformada toda a articulação com os cuidados de saúde primários e finalmente tem de haver uma reforma completa. Não apenas um plano de melhoria”, defendeu.

Faltam médicos, equipamentos hospitalares e articulação entre todos os serviços

Já a médica Isabel Carmo, do Movimento Estamos do Lado da Solução, lembrou que a desigualdade social  existente “é um fator de doença e de falta de saúde”, desigualdade que a pandemia tem vindo a acentuar. “Quem adoece na doença aguda está garantido, quem  quer uma consulta não tem, é muito desigual”, disse.

Isabel do Carmo não foi mansa com as palavras, relatando uma realidade bem dura: “Os doentes a morrer em macas é comum. O doente psiquiátrico em macas à espera de cama é comum”, afirmou, lembrando que tudo isto é um cenário “desumano”.

Sublinhou que, além dos equipamentos hospitalares que estão em falta, todos os utentes deviam ter um médico de família — uma questão que muitos outros intervenientes sublinharam como sendo fundamental. Aliás, o problemas dos recursos humanos foi comum a quase todos, no entanto o PRR não abrange o reforço de profissionais.

Por outro lado, também a articulação entre os hospitais e cuidados de saúde primários é fundamental. Assim como linhas telefónicas nos centros de saúde para que o utente possa comunicar para lá ou mesmo uma base de dados comum a todos os serviços de saúde com o historial clínico de cada utente — para que qualquer médico que o consulte possa conhecer o seu percurso no sistema de saúde.  Também são necessários centros partilhados de meios complementares de diagnostico e terapêutica

“A ideia que retive, não basta ter mais respostas, é preciso ter melhores respostas, integradas e de acordo com o que são as expectativas”, resumiu no final a ministra da Saúde, Marta Temido, lembrando que as “reformas Big Bang” já acabaram e que agora é importante “reformular ou renovar”.