Pense naquele impulso de autodeterminação absolutamente decisivo para desencadear uma mudança na rotina, ou mesmo no estilo de vida — deixar de fumar, contrariar o sedentarismo ou adotar uma alimentação regrada e saudável. Para muitos, reduzir o guarda-roupa a algumas dezenas de essenciais pode representar um desafio equiparável. Não é exagero. A cultura de consumo está enraizada, sobretudo quando falamos de moda, e facilmente um guarda-roupa farto se torna sinónimo de uma vida mais completa. Tudo pela imagem, essa fonte de autoconfiança.
O raciocínio cai por terra à luz do conceito de armário cápsula. A capacidade de fazer mais com menos e de pôr a curadoria (e a criatividade) à prova em benefício de valores éticos, de construção pessoal e equilíbrio emocional, de melhoria da própria imagem e até de sustentabilidade ambiental é inerente ao método. O tema tem ressaltado entre influenciadores digitais de todo o mundo e um pouco por toda a imprensa de lifestyle.
Nos últimos anos, o novo minimalismo integrou-o na sua dinâmica de viver melhor reduzindo os recursos ao essencial. Mas o armário cápsula está longe de ser uma novidade. O conceito foi inicialmente sugerido por Susie Faux, proprietária de uma boutique londrina chamada Wardrobe, ainda na década de 70 do século passado, referência a um conjunto de peças básicas e intemporais que, ao longo do tempo, podiam ser complementadas com itens sazonais.
Em 1985, foi a norte-americana Donna Karan a reforçar a ideia. Como? Através de “Seven Easy Pieces”, a sua primeira coleção em nome individual, ao fim de mais de uma década a desenhar para a Anne Klein. Nesse desfile, um grupo de manequins vestidas apenas com bodies e collants acabaria por vestir outros básicos: uma saia, umas calças, um casaco de corte clássico, uma camisola de caxemira e uma camisa branca.
“Há tantas mulheres para quem combinar as roupas certas é uma tarefa terrível. Elas descobriram formas rápidas de pôr comida na mesa, mas não sabem como gerir os seus armários com facilidade”, afirmou a designer na época. Os sete essenciais de Donna Karan viriam a sofrer oscilações ao longo dos anos, mas os alicerces estavam lançados — não eram necessárias mais peças para pôr o guarda-roupa a funcionar.
Armário cápsula precisa-se. Mas quem e porquê?
Maria Gonçalves foi a primeira em Portugal a levar o tema a sério e a publicar sobre ele. Quem é que precisa de um armário cápsula? Bem, segundo ela, há sintomas flagrantes — da mais genérica insatisfação à eterna incógnita do que vestir, passando, é claro, pela relação difícil (ou demasiado fácil) com as idas às compras. Em todos os casos, o objetivo é só um: tornar o guarda-roupa mais funcional.
Tarefa custosa que Maria iniciou no outono de 2017. “Tornou-se uma loucura, todas as semanas comprava roupa. Cheguei a ter três roupeiros, com três portas cada um. Nessa altura contei 18 vestidos pretos, 87 pares de sapatos. Era um caos. Foi aí que criei o meu primeiro armário cápsula”, recorda ao Observador. É inevitável perder algum tempo com o inventário. Conta que foi para a frente do espelho e que experimentou tudo para ir decidindo o que ficava e o que não ficava. No final, mais de 60% da roupa que tinha foi embora.
Criar o primeiro armário cápsula fez com que Maria mudasse a sua relação com as compras. “É preciso perceber de onde está a vir o caos do nosso armário. Compramos muito? Compramos mal? Cedemos aos saldos? Basicamente, mudei a minha mentalidade — deixei de ter aquele refúgio negativo que era comprar roupa para passar a comprar menos e para manter o que já tinha”, remata a autora do livro “Armário Cápsula”, publicado em março do ano passado.
Confundir quem implementa o conceito com sucesso com alguém que não segue tendências ou não se interessa por moda é infundado e não corresponde à realidade. Para Sara Pinto da Silva, que há quase dois anos começou a partilhar a própria experiência no Instagram, o apelo nasceu precisamente daí. “Queria brincar com a moda”, refere em conversa com o Observador. “Comecei a procurar uma forma de fazer evoluir o meu armário sem ter de comprar roupa constantemente. Muita gente associa este conceito ao minimalismo e à sustentabilidade. Também estão envolvidos, mas eu queria tirar o máximo partido do meu armário”, completa.
O regresso a Portugal, depois de dez anos a viver fora, foi o empurrão que faltava. “Inevitavelmente, não podia trazer tudo o que tinha”, nota. Se é difícil? Sim, sobretudo a parte da “dieta de compras”, expressão que usa para definir a abstinência que recomenda para os primeiros tempos.
“Mesmo quem se interessa por moda vai começar a olhar para a roupa de forma diferente, de uma maneira mais criativa. E é um processo importante para vermos o que realmente funciona para nós. Podemos achar muita graça a uma peça, mas se depois só resulta num determinado contexto e não conseguimos que ela se multiplique por vários looks, não vale a pena”, esclarece. Sara fala em versatilidade, algo que aprendeu a valorizar (e a farejar à distância) nos últimos tempos, sobretudo depois de perceber que, a par da roupa, é ela um dos essenciais que não pode faltar dentro do guarda-roupa.
Ser realista e cultivar o desapego
“Temos de ser honestos, acima de tudo”, acrescenta Sara, que todas as semanas partilha dicas de como tirar partido de um guarda-roupa funcional e consciente. Como o armário carrossel, exercício apresentado no Instagram que desafia os seguidores a elaborarem looks para cinco dias, com a roupa que têm à mão. Cada um deve recuperar uma das peças usadas no dia anterior. O treino tem em vista desbloquear a criatividade e afinar o sentido de styling, mas também filtrar a roupa que temos à disposição.
“Mais uma vez: posso gostar muito de uma peça, mas se não a vou usar no meu dia-a-dia, não tem lógica mantê-la na seleção de peças que fiz”, apela, recordando que um armário cápsula não limita o leque de escolha, pelo contrário. “É uma ferramenta que nos ajuda, não que nos dificulta a vida”, conclui.
Livre, criativa, funcional, confiante. Sara recorre a todos estes adjetivos para testemunhar a vida depois de libertar espaço no armário. Através da plataforma A Capsula, entretanto criada, começou a prestar um serviço de consultoria direcionado, ajudando outros a atingir os mesmos resultados,sem radicalismos nem soluções drásticas. “As pessoas dizem, sobretudo, que é algo libertador, que lhes sai um peso de cima. E a criatividade aumenta à medida que descobrem novas possibilidades”.
Chegar lá exige reeducação e muitas escolhas. Maria Gonçalves, que (recordamos) se desfez de mais de metade do que tinha no roupeiro, fala num processo complexo, dificultado pelo apego à roupa. “Temos muito essa questão em Portugal. As gerações dos nossos pais e dos nossos avós experienciaram outras carências, não tinham a facilidade em comprar [roupa] que temos hoje. Quando acontecia era um momento especial. Isso faz com que tenhamos muita dificuldade em desfazermo-nos das coisas. Precisamente porque tivemos como exemplo: ‘guardo tudo’, ‘pode ser preciso’ e ‘ainda pode fazer falta um dia'”, refere a autora.
A roupa deixa de ser apenas roupa e a sua gestão assume contornos emocionais. Sara fala precisamente num duelo entre entre emoção e pragmatismo. As peças têm história, também é essencial ser prático na abordagem do armário cápsula, o que implica antecipar alguns dos argumentos mais usados para manter o que não se veste — “foi a minha mãe que me deu” ou “foi tão caro” ou até “não me serve agora, mas daqui a dois meses…”. “É preciso ter força para admitir que aquilo não faz sentido no armário”, conclui.
Quantas peças tem um armário cápsula?
“Originalmente, ter um armário cápsula é ter uma base com um determinado número de peças, tudo básicos para depois combinar com as tendências. É claro que hoje há nuances diferentes. Cada pessoa aplica-o à sua realidade”, resume Maria Gonçalves. O número não é rígido, no entanto. Os mais radicais dirão dez, os mais permissivos poderão ir até à meia centena. No meio, o número 37 tem orientado centenas de pessoas em todo o mundo, quando optam por reduzir o armário ao mínimo indispensável.
Quanto às entendidas com quem falámos, o mais importante parece ser mesmo princípio. “No início não convém facilitar muito, mas a partir do momento em que estamos mais por dentro deixamos de estar tão preocupados em seguir à risca. Este inverno, por exemplo, decidi criar um armário de 50 peças, já a contar também com a primavera. Mesmo em qualquer outra altura do ano, tento nunca passar as 55 peças”, explica Maria.
A sazonalidade deverá sempre ser tida em conta, o que não significa que algumas peças não possam manter-se pertinentes durante todo o ano. No final de um ciclo, saem alguns itens, entram outros, mas sem nunca perder o número máximo de vista. “Há armários cápsula para todos os estilos. Noto que quem gosta de um registo minimalista se sente mais atraído pelo conceito, o que é compreensível porque as peças intemporais garantem que não temos de nos preocupar em substitui-las durante os próximos anos. Mas é possível ter cores e padrões, é tudo uma questão de ter estratégia no que se compra”, detalha ainda.
Livrarmo-nos do que não usamos ou do que é pouco versátil, explorar ao máximo as diferentes combinações entre as peças e encarar as novas aquisições como situações pontuais e altamente refletidas são as regras de ouro para levar um armário cápsula a bom porto. Truques como manter o núcleo do guarda-roupa fiel a uma paleta sóbria e excluir os acessórios das contas para poder inovar nos looks com pequenos apontamentos podem ajudar.
“Não sou muito a favor de ditar um número”, exclama Sara Pinto da Silva, com formação em marketing digital. “Escolho certas peças — entre 20 e 50 — para utilizar num determinado período de tempo, normalmente três meses. Não incluo calçado, nem malas, nem outros acessórios porque é com isso que me divirto”. Uma dica para avaliar a versatilidade de uma peça: perceber se é possível usá-la em, pelo menos, três combinações diferentes. “Do nosso armário cápsula temos sempre de esperar o maior número de possibilidades, por isso é que é tão importante garantir que todas as peças, ou a maioria delas, podem ser combinadas entre si”, continua.
https://www.instagram.com/p/CKbaICjCfGz/
Sara rejeita a ideia de deixar de fazer compras — desde que aderiu ao armário cápsula que se voltou sobretudo para as peças em segunda mão –, mas também refuta que o passo seja um pretexto para renovar o roupeiro. “É um dos falsos mitos: achar que é para deitar tudo fora e gastar imenso dinheiro em peças de boa qualidade”, admite. “O facto é que permite reduzir muitíssimo o consumo de roupa. No ano passado, acho que nem cheguei a comprar dez peças”.
Cabe a cada um definir as prioridades do seu armário cápsula, embora itens como umas calças de ganga, um sobretudo de corte clássico, uma camisola quente, uns ténis versáteis e confortáveis ou a camisa branca e a saia versátil de que falava Donna Karan em 1985 sejam peças que reúnem consenso, ao ponto de se declararem universais. O confinamento ditado pela pandemia veio, certamente, reorientar as escolhas. Os armários tiveram de ceder espaço ao chamado loungewear, tenha ele a forma de um fato de treino ou não. “Nunca ninguém vai conseguir ter o armário de sonho. O meu, pelo menos, está sempre em construção. Quando aceitamos que o armário é algo em constante evolução, é muito mais fácil”, afirma Sara.