O padre católico português Heitor Antunes, sobre quem a diocese de Vila Real abriu em 2019 uma investigação por abusos de menores na sequência de uma reportagem do Observador sobre o caso, abandonou o sacerdócio com autorização do Papa Francisco, segundo confirmou esta sexta-feira ao Observador o bispo de Vila Real, D. António Augusto Azevedo.

“O caso que refere já está concluído porque a pessoa em questão pediu a redução ao estado laical que já foi concedida pelo Papa Francisco”, confirmou o bispo de Vila Real.

O Observador apurou que o padre está a trabalhar num lar em Vila Real, propriedade de um outro padre que em 2017 foi alvo de um processo canónico por duas razões: assumiu a paternidade de duas filhas já adolescentes e estava a ser investigado pelo Ministério Público por suspeitas de desvio de dinheiro.

A reportagem do Observador, publicada em fevereiro de 2019, conta a história de como o sacerdote iniciou em 2002 uma relação de intimidade com uma criança da sua paróquia, à época apenas com 12 anos, que evoluiu para uma relação física quando a jovem ainda era menor de idade e que culminou, mais tarde, com uma gravidez.

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Durante os primeiros anos, a jovem esteve convencida de que estava efetivamente apaixonada pelo padre Heitor Antunes, motivo pelo qual a relação abusiva se manteve durante vários anos sem que a jovem se afastasse da Igreja — antes pelo contrário, a vítima manteve-se sempre na esfera da Igreja Católica, tornando-se inclusivamente catequista na sua paróquia.

A relação entre entre o padre Heitor e a jovem, que o Observador identificou na reportagem pelo nome fictício “Mariana”, prolongou-se, com interrupções, até à idade adulta da vítima, que engravidou aos 23 anos. Nesse momento, o sacerdote recusou assumir a paternidade oficial da criança, embora a história acabasse por se tornar pública na paróquia, onde a jovem foi discriminada e culpabilizada pela relação com o sacerdote, figura muito querida na comunidade.

“Todos sabem que foi pai, mas preferem acreditar que a culpa foi da rapariga”, resumia em 2019 uma fonte da diocese ao Observador.

O caso chegou às autoridades policiais em 2015 na sequência de uma queixa anónima enviada à Polícia Judiciária a propósito de comportamentos suspeitos de dois padres da região, um deles Heitor Antunes. O caso foi investigado e, nos registos consultados pelo Observador, há várias referências a relacionamentos amorosos secretos e até a uma menor de idade grávida, não sendo claro se a referência dizia respeito àquele caso ou a um outro.

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“Mariana” acabou por ser ouvida pela PJ e por contar a sua história com o padre Heitor — designadamente a história do relacionamento começado quando ela ainda era menor de idade —, mas o processo não avançou mais devido ao tempo que já passara: os crimes já tinham prescrito e já se tinha esgotado o prazo para apresentar queixa (a vítima tinha 24 anos de idade e teria de apresentar a queixa até seis meses depois de completar 18 anos).

Em 2016, depois daquela investigação policial, o sacerdote foi transferido para o Canadá, para acompanhar uma comunidade de emigrantes portugueses naquele país. O então bispo de Vila Real, D. Amândio Tomás, justificou à PJ a saída do sacerdote do território nacional com uma “situação pessoal”, não mencionando o caso em questão. O bispo disse também à PJ que se soubesse de qualquer caso de envolvimento com menores tê-lo-ia denunciado às autoridades.

Também a ida de Heitor Antunes para o Canadá esteve envolta em mistério. Ao contrário que acontece com os sacerdotes que são enviados para o estrangeiro para as comunidades de emigrantes, o padre Heitor não aparecia registado no anuário católico português nessa circunstância — surgia, simplesmente, sem qualquer tarefa atribuída. Ao mesmo tempo, a diretora da Obra Católica Portuguesa das Migrações (OCPM), organismo responsável pelos sacerdotes que acompanham os emigrantes portugueses no estrangeiro, disse ao Observador que aquela transferência de Heitor Antunes para o Canadá não tinha seguido os trâmites habituais. Até o Observador perguntar por Heitor Antunes à diretora do organismo, Eugénia Quaresma, o nome era-lhe desconhecido.

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Um dia depois de o Observador ter publicado a reportagem, a diocese de Vila Real confirmou que abrira uma investigação interna ao caso, argumentando que foi através dos contactos do jornal que o bispo de Vila Real tomou conhecimento pela primeira vez da possibilidade de o relacionamento ter começado quando a jovem tinha 12 anos de idade. Na mesma ocasião, a diocese admitiu que não tinha havido uma nomeação oficial para a transferência de Heitor Antunes para o Canadá — tinha sido por opção do próprio sacerdote.

Duas semanas depois, o bispo de Vila Real suspendeu o padre Heitor Antunes e ordenou-lhe que regressasse a Portugal, para a investigação canónica. “Mariana” chegou a ser chamada para prestar testemunho.

Não ficaram claros os contornos em que a diocese canadiana de Hamilton aceitou o padre Heitor Antunes, que foi colocado ao serviço de uma paróquia portuguesa no Canadá. O que parece mais provável é que a diocese canadiana não tenha sido informada de todos os detalhes do passado do padre Heitor Antunes: em março de 2019, depois da abertura do processo canónico em Portugal, também a diocese canadiana decidiu suspender o sacerdote das funções que desempenhava junto dos emigrantes, embora tenha acrescentado que naquele país não foi apresentada qualquer queixa contra ele.

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Com as possibilidades de investigação criminal esgotadas devido aos prazos de prescrição expirados, o processo canónico era a única investigação formal que decorria a este caso. Nas circunstâncias mais graves, o processo interno poderia culminar com a pena máxima — a demissão do estado sacerdotal. Todavia, ao pedir ele próprio a redução ao estado laical, a própria investigação canónica também se esgota.

Com a redução ao estado laical, Heitor Antunes fica formalmente dispensado de todos os deveres e obrigações próprios dos sacerdotes (designadamente a disciplina do celibato) e é afastado da esfera do clero católico. Embora a ordenação seja considerada como irreversível pela Igreja Católica, Heitor Antunes deixa, na prática, de ser padre, perdendo todos os serviços na Igreja e passando a viver como um leigo.

Nota: este artigo foi objeto de um direito de resposta e retificação que pode ler aqui.