Durante muitos anos Charlotte Gainsbourg não falou publicamente sobre o seu pai. Não porque lhe custasse discutir a imensa lista de atos provocatórios que caracterizaram o comportamento do eternamente rebelde Serge, mas porque, por mais anos que passassem, falar do homem que acumulava ser génio da música com paladino do libertarianismo lhe causava dor.

“Felizmente as pessoas fizeram esse trabalho por mim”, dizia ela recentemente à AFP, mostrando-se comovida com o amor que o mundo ainda dedica ao trabalho do seu pai, trinta anos após a morte deste, uma data que se comemora (para sermos precisos) a 2 de março e que é assinalada com uma catrefa de reedições, documentários, podcasts (uma praga para a qual parece não haver cura ou vacina) e livros. Mas talvez nada disto fosse necessário – talvez, de uma maneira ou de outra, nunca tenhamos deixado de falar de Serge Gainsbourg.

Uma série de acontecimentos aparentemente não relacionados e aleatórios demonstram a perenidade do fantasma: quando surgiu o formato CD, Gainsbourg foi reeditado e redescoberto por uma nova geração; a brigada dos deprimidos românticos composta por músicos dos Bad Seeds fez discos de versões, enquanto os Tindersticks o mencionavam como influência; com o advento do formato digital mp3, Gainsbourg foi ripado e assimilado por ainda outra geração; Jarvis Cocker (a voz e mente rara dos Pulp, mas não só), talvez o seu herdeiro mais óbvio, proferiu publicamente a sua veneração pelo velho debochado milhentas vezes; mesmo gente dada a boas relações com as coisas da eletrónica, como os Massive Attack ou os Portishead, samplaram-no; o Youtube trouxe vídeos como o de “Les Sucetttes” ou a famosa diatribe em que Gainsbourg se dirige a Whitney Houston e lhe diz “I wanna fuck you”. À hora a que escrevo este texto uma qualquer adolescente estará a fazer coreografias no tik-tok ao som de “Je t’aime, moi non plus”.

Birkin And Gainsbourg

Jane Birkin e Serge Gainsbourg conheceram-se em 1968 na rodagem do filme “Slogan”, lançaram um álbum com o nome de ambos em 1969 e tiveram um filha, Charlotte. A relação de ambos terminaria ao fim de 13 anos

Hoje é fácil encontrar a obra de Gainsbourg – basta ir ao Spotify e se não está lá tudo o que gravou está mais qualquer coisa (inclusive demasiadas versões dub das suas canções). Mas nem sempre foi assim: antes das sucessivas revoluções tecnológicas instituírem a era da nostalgia, encontrar discos do bardo era verdadeiramente difícil. Em 1997 vieram as primeiras reedições de discos individuais, a melhor das quais Comic Strip; mais ou menos por essa altura começaram a circular cópias de De Gainsbourg À Gainsbarre, ou, mais propriamente, de uma edição de 1990 em que essa compilação era compactada em dois CDs num total de 42 canções.

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Os desconhecedores de Gainsbourg que pretendam uma visita guiada pela sua obra sem serem obrigados a parar em cada um dos 16 álbuns que editou podem muito bem começar por De Gainsbourg À Gainsbarre, que consegue o milagre de fornecer um mapa para a obra, levando-nos do homem da chanson até fases posteriores em que assoma a paixão pelo reggae, passando pela sua costela erótica (que o levou a fazer a banda-sonora de “Goodbye Emmanuelle”).

Charlotte diz que o seu pai não conseguiria escrever hoje as canções que escreve visto vivermos tempos em que as pessoas se ofendem com facilidade; se a proposição é difícil de provar, convém lembrar que as pessoas já se ofendiam antigamente, nomeadamente em 1965, quando France Gall (que nesse mesmo ano tinha representado o Luxemburgo na Eurovisão com uma canção de Gainsbourg, que lhe deu a vitória) lançou uma canção escrita pelo fancês chamada “Les Sucettes”, cuja letra pode ser traduzida levianamente e mais coisa menos coisa assim:

“Annie adora chupa-chupas
chupa-chupas de anis
(…)
[Adora] dar-lhes beijinhos
(…)
Por alguns penny Annie
Chupa os seus chupa-chupas
(…)
Quando o açúcar perfumado a anis
Desce pela garganta de Annie
Ela está no paraíso”.

France Gall manteve ao longo dos anos que sempre pensou que a canção era simplesmente sobre uma rapariga que apreciava chupa-chupas, mas é difícil não ver ali uma metáfora para sexo oral – como toda a França viu, o que deu cabo da imagem beatífica de Gall e rendeu bom dinheiro a Gainsbourg (porque o escândalo tornou a canção um sucesso).

Por esta altura já Lucien Ginsburg (assim nascido a 2 de abril de 1928) era um compositor de relativo sucesso. Filho de um pianista de origem russa que ganhava a vida a tocar em cabarets, Lucien cedo aprendeu a imitar o pai no deambular dos dedos pela cordilheira de teclas brancas e negras; estudou artes e passou o serviço militar todo a tocar piano e a embebedar-se antes de ganhar a vida da exata mesma maneira que o pai ganhava. Nessa altura já era um alcoólico.

Há quem defenda que o estilo boémio de Gainsbourg não se deve apenas a um amor à libertinagem que invariavelmente o conduzia a cabarets, garrafas e prostitutas (ou não prostitutas, ele não era esquisito com mulheres), que havia desde cedo ali uma dor provocada pelo seu crescimento como judeu numa França ocupada. A infância tê-lo-á marcado profundamente e é difícil não especular que esse sentido de outsider se tenha sublimado posteriormente na sua provocação, na sua desconstrução constante dos costumes.

Ali por 1967, Gainsbourg, um feio-bonito que encontrou apeadeiro em algumas das mais belas mulheres da sua época, envolveu-se com Brigitte Bardot, dedicando-lhe o álbum Initials B.B. onde devia constar a pornográfica “Je t’aime, moi non plus”, que gravou com e para ela. Mas Bardot, que era casada, pediu-lhe que não editasse a versão com a sua voz (dela, Bardot) e a canção só surgiria dois anos mais tarde, no disco Jane Birkin/Serge Gainsbourg, com voz de Birkin, com quem entretanto Gainsbourg iniciara uma relação amorosa. Foi, aliás, com Birkin, que Gainsbourg teve uma filha chamada Charlotte.

“Je t’aime, moi non plus” é uma das mais extraordinárias canções pop de sempre, movida a uma linha de baixo ondulante e um órgão pornográfico, num registo que faria escola mais tarde nas bandas-sonoras de soft-core; além de descrever um ato amoroso, a canção acaba com Birkin a gemer de forma (digamos) bastante credível (pelo menos eu acredito).

[“Je t’aime, moi non plus”:]

Volvidos dois anos, Gainsbourg editava Histoire de Melody Nelson e talvez possamos declarar esta época como o topo do jogo do artista, a que se seguiu um período, digamos, conturbado. Primeiro houve um ataque cardíaco a que Gainsbourg reagiu recusando-se a deixar de fumar e beber, depois, na viragem da década, veio a fase reggae: Aux Armes Etcaetera, o álbum, continha a canção com o mesmo nome, que era uma versão da “Marselhesa” – o escândalo foi de tal monta que Gainsbourg chegou a receber ameaças de morte (mas não foi cancelado e ainda saiu como herói desta contenda).

A partir daqui começa a verdadeira decadência de Gainsbourg, com o músico a surgir constantemente embriagado em palco e em estúdio, como no caso em que disse “I wanna fuck you” a Whitney Houston ou, noutro programa de TV, quando insultou Catherine Ringer, vocalista do duo Les Rita Mitsouko dizendo “Não passas de uma puta ordinária”.

Isto, nos dias de hoje, levaria certamente a cancelamento, muito contorcionismo de relações públicas e pelo menos uma passagem por um qualquer centro de reabilitação para alcoólicos. Gainsbourg reagiu ao mal-estar público com o seu comportamento editando “Lemon Incest”, gravado com a sua filha Charlotte. É uma grande canção (talvez a sua última grande canção) mas, muito possivelmente, uma grande canção que hoje ficaria na gaveta.

[“Lemon Incest”:]

“Lemon Incest” era a última faixa de Love on the Beat, um disco de eletrónica (de 1984) para cuja faixa-título Gainsbourg usou samples da artista Bambou a gritar durante o sexo (gritos reais, sexo real). Love On the Beat estava ali na fronteira do mau gosto, da pornografia e do génio, mas não deixa de ser admirável que uma artista nascido em 1928 conseguisse chegar aos 57 anos com esta dose de imaginação, ocasional brilhantismo e sempre à procura de novas formas de fazer canções, sem por uma vez se repetir.

Os cinco maços de Gitanes sem filtro que Gainsbourg fumava por dia apanharam-no finalmente em 1991, aos 62 anos de idade, sob a forma de ataque cardíaco. Para trás ficavam décadas de génio, sarcasmo, hiper-sexualização, uma voragem musical capaz de misturar todos os géneros e uma década final de decadência pessoal que, sendo lamentável, não apaga o gigantismo da obra.

Talvez tenha sido um pequeno monstrinho e nos dias de hoje muito facilmente seria qualificado como machista, mas há uma coisa que Gainsbourg foi de certeza absoluta: um génio.