O vínculo laboral dos trabalhadores das plataformas digitais, como a Uber ou Glovo, aproxima-se mais “de um verdadeiro contrato de trabalho” do que de uma prestação de serviços, segundo especialistas em Direito do Trabalho contactados pela Lusa.

Segundo a advogada Susana Afonso, da CMS Rui Pena & Arnaut, em Portugal, “à partida, estão verificadas as condições para se admitir que há um verdadeiro contrato de trabalho”, nomeadamente na atividade de transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica (TVDE).

“Temos de atender aos elementos tipificadores da relação de contrato de trabalho, mas considerando que o veículo automóvel é da sociedade/operador, que é esta que controla a utilização do mesmo e recebe a remuneração da plataforma eletrónica, remunerando em seguida o motorista, à partida, estão verificadas as condições para se admitir que há um verdadeiro contrato de trabalho“, afirma Susana Afonso.

Também Pedro da Quitéria Faria, da Antas da Cunha ECIJA, diz que “em teoria” o vínculo destes trabalhadores estará atualmente “mais perto de um contrato de trabalho do que de um contrato de prestação de serviços”. Ambos consideram que não existe em Portugal propriamente uma lacuna na lei, uma vez que existe já um regime jurídico específico da atividade de TVDE desde 2018 e que o Código do Trabalho prevê a presunção de contrato de trabalho nestas situações, mas defendem que é necessário ir mais longe.

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Não entendo que haja uma lacuna, atento o regime geral e a existência do regime jurídico específico da atividade de TVDE, aprovado pela Lei n.º 45/2018, de 10 de agosto”, afirma Susana Afonso, referindo que esta questão em Portugal “também se pode resolver por decisão judicial”, como aconteceu no Reino Unido, onde a Uber perdeu uma batalha judicial, que se arrastava desde 2016, tendo sido obrigada a classificar os condutores como trabalhadores próprios e não autónomos.

Por outro lado, acrescenta a especialista, “a fronteira surge-nos mais ténue na qualificação dos contratos entre os motoristas e os operadores (empresas que estabelecem contrato com a Uber, por exemplo), isto é, se têm uma relação de prestação de serviço ou de contrato de trabalho”.

Pedro da Quitéria Faria refere que o Código do Trabalho “já contém mecanismos, nomeadamente o método indiciário de presunção de laboralidade” que permite aferir da existência ou não de um vínculo laboral. Contudo, o advogado afirma que as “especificidades próprias” de cada uma das plataformas digitais promovem situações de “limbo” ou de dificuldade na apreciação da verificação da presunção de laboralidade.

“Nesse sentido, parece-me que a legislação laboral portuguesa poderá estar desfasada desta nova realidade da economia digital e do designado direito do trabalho 4.0”, diz Pedro da Quitéria Faria, defendendo que deve ser efetuada “uma reflexão profunda” que responda “de forma assertiva e eficaz a estas questões novas”. Quanto à proteção social destes trabalhadores, Pedro da Quitéria Faria sublinha que “com um contrato de trabalho seguramente estariam protegidos“.

Num contrato de prestação de serviços, “provavelmente na esmagadora maioria das situações” não estarão protegidos “em situação de desemprego”, afirma o advogado reforçando que é também por isso necessária “a regulação destas relações contratuais”. Já Susana Afonso diz acreditar que “qualquer motorista que reclame judicialmente uma relação de contrato de trabalho poderá ver esclarecida a sua questão”.

“Se for considerado trabalhador, ser-lhe-á reconhecido esse enquadramento com efeitos retroativos, quer em termos de proteção de segurança social, quer em termos de aplicação das obrigações próprias dessa relação, nomeadamente aplicando-se-lhe o regime de organização do tempo de trabalho das pessoas que exercem atividades móveis de transporte rodoviário”.

“Se assim não suceder, será considerado um trabalhador independente, com as proteções legais, mesmo em termos de segurança social, que estão legalmente definidas”, conclui a advogada. No Reino Unido, em fevereiro, a Uber foi obrigada pelo tribunal a classificar os condutores como trabalhadores próprios e não autónomos, reconhecendo todos os “direitos básicos”, bem como “férias pagas”.

Em Portugal, o Governo pretende começar a discussão na Concertação Social sobre a regulação laboral das plataformas digitais após a publicação do Livro Verde sobre o futuro do trabalho que deveria ter sido apresentado até final de 2020.  Segundo os parceiros sociais, o executivo apresentou até ao momento apenas uma síntese das linhas gerais do Livro Verde.

Em 24 de fevereiro, a Comissão Europeia iniciou uma consulta aos parceiros sociais europeus sobre como melhorar as condições de trabalho das pessoas que trabalham através de plataformas digitais.