Título: Atlas Almirante Reis
Organizadores: Filipa Ramalhete, Margarida Tavares da Conceição, Inês Lobo
Editor: Tinta da China
Design: Atelier Pedro Falcão
Páginas: 256, ilustradas
Preço: 30 €

A capa de “Atlas Almirante Reis” (Edição: Tinta da China)

Esta Avenida dos Anjos de 1895 a 1903, Avenida Rainha D. Amélia de 1903 a 13 — sim, 13! — de Outubro de 1910 e desde então Avenida Almirante Reis demonstra bem como condensar e explicar os incessantes ciclos históricos de renovação, decadência ou renascimento de uma cidade. Para João Miguel Appleton e João Vieira Caldas (p. 79), constitui “um notável estudo de caso sobre a evolução do prédio de rendimento em Lisboa na primeira metade do século XX”. Também o próprio nome actual da avenida nos diz até onde pôde chegar a furiosa usurpação republicana, que o mudou — e tão à pressa, benza-a deus… uma semana apenas! — para homenagear Carlos Cândido dos Reis, o carbonário & maçon dado como o grande mentor do golpe de 5 de Outubro, que temendo o fracasso da fraca intentona se suicidou nesse dia, embora este acto de cobardia ou depressão lhe tivesse rendido ipso facto um funeral de grande aparato cenográfico e ideológico e este tão exorbitante prémio toponímico, logo acrescentado, nos meses seguintes, por um retrato seu de grandes dimensões — e qualidade proporcionalmente inversa — pago pelo erário público a Veloso Salgado (que já havia pintado a Rainha…), para que figurasse ostensivamente nos Paços do Concelho de Lisboa, e até hoje. Que só na p. 31 o primeiro e segundo nomes desta grande via radial oriental da cidade sejam enunciados, também deixa à vista o peso histórico dos factos ditos consumados e a vitória das legitimações autoritárias e precárias.

Se tanta pressa houve em impor o novo topónimo à vida quotidiana dos lisboetas, já tudo o que havia sido imaginado em 1892 e 1903 — prolongar a avenida até quase à actual Praça João do Rio, primeiro, e até à chamada Rotunda do Relógio, depois — como parte do “primeiro grande ciclo de renovação da imagem urbana e expansão da cidade depois do plano pombalino” (p. 31), tropeçou em expropriações tardias (1917) e na extraordinária e paralisante “turbulência política e económica” (p. 32) do novo regime, que não podia deixar de coagir consistentemente qualquer retoma da “iniciativa de urbanização nas primeiras fases integralmente privada” (p. 6).

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Prédios de rendimento de cinco ou seis pisos — quase todos, mas também dois cinemas e uma garagem, e muito mais — foram sendo construídos ao longo dos anos nesse “rasgo contínuo” de 3 km

Raquel Henriques da Silva, no prefácio em que parece querer apresentar-se como a mais relevante historiadora do urbanismo lisboeta depois de José-Augusto França (ocultando outros contributos, que as impávidas mas honestas e inequívocas estantes das bibliotecas, todavia, não renegam), realça o facto de, ao contrário das ditas Avenidas Novas, nunca ali terem sido erguidos edifícios merecedores do celebrado Prémio Valmor, depois do que foi atribuído em 1908 ao prédio de rendimento que Adães Bermudes (1864-1948) desenhara três anos antes para Guilherme Augusto Coelho (pp. 53, 120; alçado p. 79; planta p. 89) e é hoje um hotel cujo nome celebra, precisamente, a data desse exclusivo reconhecimento arquitectural. Para Appleton e Caldas, curiosamente, “os fogos de gaveto estão, desde os primórdios da avenida, entre os de maior qualidade” de desenho, pois “quase (mas não) sempre”, optou-se por uma “adaptação dos modelos existentes” e por “uma “preguiça” no projecto que é tanto maior quanto mais regular é o lote” (pp. 89, 90). Aqui e ali algumas moradias, e em geral cérceas “a gosto” dos proprietários e empreiteiros, sem regulamento municipal que as discipline e organize harmoniosamente.

Prédios de rendimento de cinco ou seis pisos — quase todos, mas também dois cinemas e uma garagem, e muito mais — foram sendo construídos ao longo dos anos nesse “rasgo contínuo” de 3 km (agora 5,5, km; p. 24) por iniciativa de promotores privados, de escala “relativamente modesta”, numa via urbana estruturante que afinal era estreita (25 m apenas; a Avenida da Liberdade 90 m; v. p. 120) e “sem espaço público à justa escala, qualificado e significante” (Varela, p. 16). Torna-se, de facto, inevitável compará-la ao eixo Rotunda, Saldanha — Campo Grande, muito mais aberto e pontuado por palacetes distintivos (ainda sobram alguns…), e nas ruas transversais prédios de rendimento, de construção de menor qualidade e de ruína a prazo. Também ali, no pioneiro “bairro” Andrade, por exemplo, construções para habitação de aluguer datadas de 1890-1900 foram demolidas e substituídas por outras nas décadas de 1950-70 (Lourenço, pp. 70-71). Mas com uma hierarquia social adicional: pelo menos, quatro “vilas operárias atrás de prédios”, e ainda alguma ruralidade intersticial.

Lisboa: decadência e street art

No Arquivo Fotográfico Municipal, uma vista do convento da Penha de França obtida desde a Almirante Reis mostra-nos vastos campos ainda por urbanizar, em data não especificada, e vários panoramas aéreos da primeira metade do século, de tão esclarecedores que são, facilmente mereceriam publicação. Infelizmente, não se foi por aí. O reduzidíssimo aproveitamento do espólio deste arquivo fotográfico — curiosamente sediado na Rua da Palma… — de central importância para o objecto em estudo é, aliás, o inexplicável óbice deste livro, que resulta, todavia, de um projecto de investigação universitária dito multidisciplinar. Em compensação, o seu cuidado com cartografia, pouco habitual entre nós, ainda que nem sempre suficientemente hábil na diferenciação cromática (v. desdobrável, pp. 45-48), merece elogios.

A Avenida Almirante Reis é o “contraponto urbano, mas também social e económico ao grande boulevard”, digamos que uma espécie de parente pobre ainda colado à cidade antiga, cujas preexistências conservou largamente, e que viu levantarem-se nas suas ilhargas em declive “bairros” destinados a uma burguesia modesta ou pequena, constituída por proprietários e comerciantes, que “resultam, na sua maior parte, de estratégias de planeamento urbano menos ambiciosas” (p. 15), ou da “particular complacência” autárquica perante empresas e regras construtoras (Lourenço, pp. 66, 82-83) — algo a que Duarte Pacheco (1900-43), na sua dupla e enérgica acção de presidente do município e de ministro das obras públicas e comunicações, rapidamente veio pôr cobro em 1938, agilizando um projecto com dez anos de gaveta e reforçando-o por “uma moderna visão global da cidade” (Hélia Silva e outros, p. 35). A Praça do Areeiro é concluída em 1946.

Ao contrário das ditas Avenidas Novas, nunca ali terem sido erguidos edifícios merecedores do celebrado Prémio Valmor, depois do que foi atribuído em 1908

A “forte diacronia” dos estilos arquitectónicos — poucos arquitectos envolvidos, alguns engenheiros mas sobretudo construtores, e abundante reprodução mimética, “muitas vezes de forma relativamente ingénua” (Appleton e Caldas, pp. 95, 86), muito mais que autoria declarada ou estabelecida — secciona a longa avenida em blocos sequenciais que o passeante cultivado distinguirá com facilidade à medida que avança e observa as fachadas principais dos seus prédios de rendimento: da Rua da Palma à Praça do Chile, os prédios ditos “eclécticos”; dali à Alameda D. Afonso Henriques, os art déco; e desta à Praça do Areeiro, os “modernistas” e os de austera “estilização nacionalista”. Todavia, os dois arquitectos reconhecem “quase sempre uma continuidade, brevemente interrompida pelos edifícios modernistas, como os das primeiras décadas do século XX. A continuidade da imagem é mais clara nas fachadas de tardoz dos edifícios, sempre funcionais e pouco decoradas — na realidade, mais modernas” (p. 86), ao mesmo tempo que, em contraste e ao contrário do que se esperaria, admitem uma progressiva hibridez e variedade dos materiais e sistemas de construção utilizados sobretudo depois dos anos 1930, o que torna “mais simples” prever o sistema estrutural presente num prédio de rendimento de imagem ecléctica, do que nos déco-modernista, e nos ditos nacionalistas (p. 93). Dão como exemplo o edifício art-déco de 1933 (duas fotos, pp. 95) com fachada principal de início integralmente coberta com estereotimia de fingidos de pedras diversas, uma técnica documentada de que persistem muito poucos exemplares em Lisboa, permitindo “imaginar uma cidade muito distinta da actual, em cujos primeiros edifícios construídos com elementos de betão armado se misturavam acabamentos utilizados desde tempos ancestrais” e “muitas das técnicas de construção antigas conviviam com as modernas dentro dos mesmos edifícios” (p. 94). Apesar da sua raridade, numa vistoria ao edifício foi mandado pintar pela CML, porque “não estava de acordo com o pretendido” (sic, nota p. 96)…

No seu importante capítulo, estatisticamente fundamentado, João Pedro Silva Nunes e Luís Vicente Baptista consideram que “a deslocação do centro de negócios e de administração para norte […] e com o longo processo de reclassificação urbana da Baixa como centro histórico e turístico, a instalação de populações migrantes teve lugar nas zonas envolventes ao centro histórico”, ditas de transição, com a Avenida a ser “objecto de uma forte procura de alojamento a baixo custo […], não raro em espaços residenciais degradados” (p. 133). Daí resultou uma “sobrerrepresentação de população residente estrangeira” nas três freguesias que formam o ao-redor da Avenida Almirante Reis” (p. 135). É o migrant urbanism da etnógrafa britânica Suzanne Hall, e o elogio do multiculturalismo em quaisquer circunstâncias, através de serviços ou pequeno comércio local desde há pouco exercido por gente de 16 origens nacionais (dados de 2017, p. 137) que em 2019 a propaganda instituída como governança fez elevar Arroios aos píncaros estratosféricos de “bairro mais cool do mundo” — do mundo tal como os editores das Time Out o entendam, mas nem tanto como isso para os seus próprios vizinhos, nem todos incluídos em “certas facções das classes médias capitalizadas culturalmente” que se interessaram pelo modismo de “zonas de transição” com ambiente cosmopolita transnacional extra-europeu, e têm vindo a “ganhar peso na população residente na zona de Arroios” (p. 142), ou alimentando “um importante mundo de associações culturais” a norte do Largo do Intendente e na envolvente da Avenida Almirante Reis, a quem Nunes e Baptista atribuem “uma ampla gama de actividades […] da construção comunitária à mobilização política de esquerda” (sic), sendo internacionalmente “bem conhecidos os processos de acção militante nos quais tais grupos se colocam em posição de porta-voz e de interlocutores políticos” (pp. 140-41).

A “forte diacronia” dos estilos arquitectónicos secciona a longa avenida em blocos sequenciais que o passeante cultivado distinguirá com facilidade à medida que avança e observa as fachadas principais dos seus prédios de rendimento

Não admira, por isso, que num dos textos gerais (“Linha de Água: ampliar”, pp. 43-49) se insista particularmente na vivificação ou reinvenção de espaços públicos variados — entre outros, os antigos cinemas Lisboa e Rex, os conventos de Arroios e do Desterro, ao Chile, mas também todo o quarteirão da Portugália —, pelos vistos com pretensão a investimento municipal directo capaz de facilitar, dar guarida e conforto futuros a esse associativismo ou a “colectivos de criação e partilha artística” instalados nesta zona da cidade, a quem Ágata Dourado Sequeira e Pedro Frade dedicam neste livro “um ensaio visual” (pp. 182-205), ou capaz de fazer reacender o “pulsar político de um eixo dorsal”, título do capítulo de João Seixas e António Brito Guterres (pp. 216-26), que falam do “advento de uma nova cultura cívica” que encontrou no amplo território envolvente à Avenida Almirante Reis “um dos locais da cidade com maior dinâmica cívica e de acção por parte dos movimentos urbanos”, onde floresce — seguindo, como dizem, o exemplo das grandes cidades espanholas… — “uma capacidade múltipla e transversal, extraordinariamente rara para a urbanidade portuguesa, e por isso mesmo, extraordinariamente preciosa e a exigir uma elevada qualidade política” (pp. 220-21), de que está arredada, é muito fácil de ver, “uma abertura claramente liberal aos investimentos financeiros externos” (p. 224)…

Mais de um século depois, volta ou quer voltar ao lugar do crime a mesma violência política fantasiada ou disfarçada de “cívica”, democrática, ou progressiva, e por isso não admira que no artigo que Marluci Menezes consagra ao lúcido e estimulante Festival Todos (pp. 228-37) esteja ausente a representação de rostos sorridentes e empáticos das campanhas de identificação fotográfica dos múltiplos “moradores da Almirante Reis” em 2009-12, e depois dele apareça e feche este livro um portfólio de Paulo Catrica com confusos armazéns de retalho e homens de costas em salas de oração a uma — e apenas uma — religião antiga.

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Livro sem dúvida interessante e inovador como estudo de arquitectura e urbanismo, mas quanto ao resto, prevalece nele o pior do ar deste tempo: a bem sucedida inclusão de comunidades migrantes num território urbano prestes a debater-se, ao rés da porta, com ambiciosos e incendiários radicalismos político-ideológicos que a Universidade, em franco delírio, agora acolhe e propaga.