Ao sentir-se incompreendido, o juiz-presidente Rui Coelho recuou a 7 de agosto de 2008 para recordar o episódio em que dois cidadãos brasileiros protagonizaram uma das mais mediáticas tentativas de assalto a um banco em Portugal. E no qual um agente da PSP disparou sobre um deles para salvar as seis pessoas sequestradas. Para assim concluir:

Foi justificado, mas não é normal. Felizmente! Eu não me recordo de isto ter acontecido noutra situação, em Portugal. Portanto, não se pode dizer que é normal os snipers da PSP abaterem assaltantes de bancos, mas pode-se dizer que naquele caso foi justificado”.

Isto porque o inspetor-chefe do SEF João Diogo não chegava a uma conclusão sobre se algemar passageiros no Centro de Instalação Temporária (CIT), no aeroporto de Lisboa, era ou não normal. A questão foi feita pela primeira vez pelo juiz-adjunto, Francisco Henriques. A primeira resposta, não foi esclarecedora — “Na minha opinião, um órgão de policial está legitimado para algemar uma pessoa” —, nem as seguintes:

— Mas eu não estou a perguntar se tinham legitimidade. Estou a perguntar se é normal — esclareceu o juiz-adjunto.

— Quando for necessário…

— A pergunta não é essa. No último ano, recorda-se de quantas pessoas foi necessário algemar? Uma? Cinco? Cem? Recorda-se de mais algum caso?— perguntou já o juiz-presidente que entretanto interveio na conversa.

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— Não me recordo, não. De momento, não — respondeu João Diogo, após alguns segundos.

— Então como é que diz que é normal?

A conversa não ficou por aqui. O inspetor-chefe continuou a insistir que algemar Ihor Homeniuk foi uma ação justificada, e os juízes a tentar saber se era uma situação normal. Após vários minutos, João Diogo acabou por responder: “Não, esta situação não é normal”. “Então, se raramente acontece, por que é que foi tratada como uma situação normal? Porque é que não teve seguimento?”, questionou o juiz Francisco Henriques.

Ouvido durante quase uma hora naquela que é a oitava sessão do homicídio de Ihor Homeniuk, o inspetor-chefe mostrou claras dificuldades em explicar como é que o cidadão ficou oito horas algemado a agonizar, sem que ninguém fosse verificar o estado em que se encontrava. O inspetor-chefe contou que no dia 12 de março recebeu uma comunicação via rádio do seu superior hierárquico, João Agostinho, a pedir para “nomear três inspetores” porque havia “confusão” no CIT. “Havia um passageiro alterado e era preciso ir lá falar com ele e tentar acalmá-lo. São situações que são recorrentes, normais. De dia sim, dia não tínhamos situações dessas. Às vezes, num único turno, tínhamos três situações dessas para resolver”, explicou.

Os inspetores Duarte Laja (à esquerda) e Bruno Sousa (à direita) no primeiro dia do julgamento

Duarte Laja, Luís Silva e Bruno Sousa foram os escolhidos para ir até à Sala Médicos do Mundo onde estava o cidadão ucraniano — os três inspetores que estão agora a ser julgados pela morte de Ihor Homeniuk. Mais tarde, contaram a ao inspetor João Diogo o que se tinha passado.

Foi uma situação normal. Quando lá chegámos, o passageiro estava todo amarrado com fita adesiva. Ele estava muito alterado a esbracejar e a dar pontapés e para própria segurança dele e da nossa apenas foi algemado”, reproduziu em tribunal.

O inspetor-chefe João Diogo garantiu que, depois de ser informado da atuação dos três arguidos, reportou o sucedido ao inspetor de turno, João Agostinho, reproduzindo o que lhe disse na altura: “A situação ficou resolvida. Algemaram o senhor. Ficou tudo bem”. Mais tarde, João Agostinho ter-lhe-á dito que transmitiu “tudo” ao diretor de fronteiras.

Uma “asfixia lenta” matou Ihor Homeniuk. As fraturas e a posição em que estavam foram a conjugação “fatal”

Além disso, assegurou que teve a preocupação de saber quando é Ihor Homeniuk ia ser desalgemado. “A meio da manhã, passei pelo Luís [Silva] e perguntei se sabia alguma coisa do senhor. Ele disse: ‘Acabei de falar com os seguranças. O senhor já está bem, já tomou o pequeno-almoço‘”, explicou, adiantando que partiu do princípio que “já estava desalgemado” e que não lhe “passava pela cabeça” que teria comido algemado.

“Eu não percebo é porquê. É que não estava. Nós agora sabemos que não estava. Esteve algemado até às cinco da tarde praticamente. Como é que ninguém, desde as pessoas que o algemaram às pessoas que estão no topo da hierarquia, se preocupou com aquela pessoa estar algemada?”, perguntou o juiz-presidente. Perguntas feitas que continuaram sem resposta. Os juiz procuraram saber se “não devia haver mais preocupação com aquele indivíduo que estava algemado.

— Ó senhor inspetor, imagina o que é uma pessoa estar algemada, deitada, desde as 9h00 às 17h00? — perguntou o juiz Francisco Henriques.

— Sei agora, depois disso…

— Ah, na altura não?

— No dia 12 de março, fui para casa convicto que o cidadão estava bem.

Mas não estava. O magistrado — à semelhança do que já tinha feito o médico que autopsiou a vítima, na sessão anterior — sugeriu até que João Diogo experimentasse estar, mesmo sem algemas, nesta posição durante “meia hora”. “Agora imagine meia dúzia de horas”, continuou. “Não é confortável não”, respondeu a testemunha, acrescentando: “Todos nós fomos para casa descansados, tranquilos, às 15h00″.

O advogado da viúva de Ihor Homeniuk, José Gaspar Schwalbach

Então, quem devia ter desalgemado o cidadão ucraniano, podendo assim evitar que estivesse mais de 8 horas a agonizar até à morte? Depois de garantir que os inspetores acusados não o podiam fazer por iniciativa própria, a não ser que recebessem ordens de alguém, só depois de muito insistência, é que João Diogo acabou por dizer que era o “superior hierárquico que estava a avaliar a situação”: o inspetor de turno ou o diretor de fronteiras. Só que, quando foi ouvido, o diretor de fronteiras disse que seria o inspetor chefe João Diogo ou o inspetor de turno João Agostinho que deviam ter acompanhado o caso.

Inspetor recebeu ordens para pôr Ihor Homeniuk num avião, mesmo debilitado: “Começou a ter convulsões e dificuldade em respirar”

O inspetor Rui Marques entrou ao serviço às 15h30 de 12 de março do ano passado. Uma das suas primeiras tarefas do dia foi fazer um embarque de um passageiro, marcado para as 16h40. Era Ihor Homeniuk e viria a morrer horas depois. Quando Rui Marques entrou na Sala Médicos do Mundo, no Centro de Instalação Temporária (CIT), no aeroporto de Lisboa encontrou o cidadão ucraniano “deitado num colchão de plástico azul, de barriga para baixo, com algemas nas pernas e as mãos nas costas, com algemas metálicas e cirúrgicas”, descreveu, ouvido também como testemunha.

Havia um odor na sala. Ele tinha as calças pelos joelhos, estava bastante molhado. Estava consciente, tentei falar com ele, tentei várias línguas, não conseguimos perceber”, contou.

Rui Marques explicou que tirou as algemas metálicas e manteve as cirúrgicas que, aliás, estavam mal colocadas e, por isso, colocou-as da forma correta. Depois, entregou as algemas metálicas à vigilante que ali se encontrava: “Ela disse-me que precisava dessas algemas, para entregar ao inspetor Luís Silva, que lhe tinha pedido”. Face ao estado debilitado em que encontrou Ihor Homeniuk, o inspetor Rui Marques questionou o inspetor-chefe Gabriel Pinto se devia fazer o embarque mesmo assim. “Ele disse sim”, rematou.

A testemunha acrescentou que, na altura, achava que não ia conseguir levá-lo na cadeira de rodas até ao avião porque estava algemado, por razões de segurança. “Nessa altura, a sua preocupação era a segurança?“, questionou o juiz-presidente Rui Coelho. Rui Marques disse que sim e, quando a Procuradora da República insistiu na mesma pergunta, explicou que já viu “pessoas que fingem que desmaiam e depois alteram-se”.

Regressado à Sala Médicos do Mundo, no Centro de Instalação Temporária, no aeroporto de Lisboa, o inspetor Rui Marques agarrou em Ihor Homeniuk para o levar para o avião. “Quando estamos a colocar o passageiro na cadeira de rodas, ele começa a ter convulsões, dificuldade em respirar e o tórax deixa de mexer“, relatou, adiantando que depois que acabou por chamar os enfermeiros. Ihor Homeniuk acabaria por morrer pouco depois.

Uma “asfixia lenta” matou Ihor Homeniuk. As fraturas e a posição em que estavam foram a conjugação “fatal”

Ihor Homenyuk morreu a 12 de março no Centro de Instalação Temporária do aeroporto de Lisboa, dois dias depois de ter desembarcado, com um visto de turista, vindo da Turquia. De acordo com a acusação, o SEF terá impedido a entrada do cidadão ucraniano e decidido que teria de regressar ao seu país no voo seguinte. As autoridades terão tentado por duas vezes colocar o homem de 40 anos no avião, mas este terá reagido mal. Terá então sido levado pelo SEF para uma sala de assistência médica nas instalações do aeroporto, isolado dos restantes passageiros, onde terá sido amarrado e agredido violentamente por três inspetores do SEF, acabando por morrer.

Apesar de no relatório o SEF ter descrito o óbito como natural, o médico que autopsiou o corpo não teve dúvidas de que tinha havido um crime, alertando imediatamente a PJ, que acabaria também por receber uma denúncia anónima que referia que Ihor Homenyuk tinha ficado “todo amassado na cara e com escoriações nos braços”.

“Isto aqui é para ninguém ver”. As 56 horas que levaram à morte de um ucraniano no aeroporto de Lisboa

Os inspetores Luís Silva, Bruno Sousa e Duarte Laja foram detidos no final de março e encontram-se em prisão domiciliária por causa da pandemia de Covid-19. Foram acusados no final de setembro e respondem, cada um, por um crime de homicídio qualificado em coautoria. Duarte Laja e Luís Silva respondem ainda por um crime de posse de arma proibida.