Maria Gabriela Llansol não está nos cânones. Está no caos. Não está nas montras, nas antologias de quem fica e quem sai. Está nos mundos do mundo, lá onde a palavra engendra um espaço e um tempo só dela porque só ela os decifrou. Está no seu excesso de tudo, de palavra e de silêncio, de mudez, de infinito. Quando chegar novembro faria 90 anos. Morreu em 2008, mas isso foi só uma circunstância da natureza, que quis levá-la para outro sítio. Nada do que começou termina, a natureza de tudo é o inacabamento e poucos fizeram trouxeram essa atemporalidade para a literatura de uma forma tão radical.

Ela que vagou por geografias tão errantes, lugares rebeldes e fez com que se encontrassem homens e mulheres de tempos longínquos através da sua escrita fragmentária, que é visão, diário, poesia, aforismo, música, litânia, manifesto, confissão e ficção. A sua escrita à qual tantos chamam de “hermética” ou “ilegível” porque estamos demasiado habituados ao que se “vende bem”, deixámo-nos convencer que o fácil e o bom são sinónimos e que uma obra de arte vale tanto quanto o dinheiro que faz render ou os likes que recebe nas redes sociais. Esta é, pois, uma oportunidade única que nos dá a RTP2, de entrarmos um pouco neste universo complexo e maravilhoso, que o poeta Fernando Luís Sampaio e o realizador Abílio Leitão tentaram decifrar sabendo que não iam conseguir.

Maria Gabriela Llansol, nos primeiros anos na Bélgica (foto do espólio da escritora)

É pois uma proposta honesta; nem os criadores, nem os vários especialistas convidados tentam reduzir esta invulgar escritora a um objeto histórico e a sua obra a um objeto literário que se arruma numa gaveta, num adjetivo. Trata-se, pelo contrário, de encontrar uma forma de linguagem cinematográfica e verbal que fosse ao encontro das particularidades, do atrito do texto e da figura de Llansol e, como explicou Abílio Leitão ao Observador, “abrisse portas e a curiosidade para que uns leitores a possam reencontrar, que outros a descubram pela primeira vez e contornem as dificuldades que lhes aparecerem pelo caminho”, como ele próprio fez quando, aos 18 anos, foi trabalhar como revisor no jornal Expresso e, no texto de algum crítico, encontrou o seu caminho para a floresta que é a obra literária Llansoliana.

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Este documentário, cujo título é “Um Olhar Intenso Pode Incendiar um Texto”, também não cai na armadilha da adoração ou da mitificação que esta escritora tantas vezes parece convocar. Protagonizado pelos atores Miguel Loureiro e Mónica Garnel, num preto e branco ascético e “querendo combater a ideia totalitária de colocar no ecrã imagens captadas de uma única perspetiva”, Abílio Leitão coloca sempre dois planos em diálogo, seja entre os atores ou entre estes e as fotografias e os manuscritos, os livros de Maria Gabriela que vão surgindo no ecrã, “para criar um efeito de eco e de espelho”, como ele próprio explica.

O filme organiza-se em torno de alguns conceitos chave da escritora: “a casa” como lugar metamórfico, sem interior nem exterior, sem paredes, nem divisões, lugar de todos os encontros e de todos os tempos. “Foi por isso que decidi colocar os atores em palco, parece-me que nada representa tão bem essa casa como o palco, lugar de todas as transformações”. Mas também os conceitos de “sobre-impressão” e “cena-fulgor”, onde ela procura estilhaçar o conceito utilitário e cronológico do tempo e faz convergir vários níveis de realidade, num processo de escrita muito devedor das imagens mentais, reais ou imaginárias, intuições, paisagens, conversas interiores e exteriores.

A escritora Hélia Correia, que é uma das várias pessoas que conheceram Llansol, convidadas a participar neste documentário, diz o seguinte:

“Ela potenciava o dom do humano, essa capacidade que o ser humano tem para escapar às suas próprias contingências (…) Ela atreve-se a derrubar as fronteiras do real porque ela fala a partir  “de um real enriquecido pela possibilidade que a língua lhe dá de alcançar um real profundo”.

Essa transformação do quotidiano, dos animais, objetos, espaços, pessoas, que deixam de estar aprisionados a um tempo e a um corpo, a uma existência meramente material para se tornarem parte de uma geografia rebelde, de uma outra ideia de Europa, de mundo, são fundamentais para perceber Llansol. Como escreveu o poeta Manuel Gusmão, nos posfácio do livro Contos do Mal Errante, a “escrita estranha e fascinante” de Maria Gabriela Llansol deve ser acolhida de forma a “que não se apague essa estranheza”, mas que possa “abrir ritualmente caminhos partilháveis”, porque seguir esta escritora não é mimetizá-la mas incorporar “o absoluto como liberdade”, que é, para Diogo Pires Aurélio, o ponto fundamental da obra desta artista.

Uma imagem do documentário onde há sempre duas imagens diferentes no ecrã. À esquerda os atores Miguel Loureiro e Mónica Garnel e à direita uma foto de Maria Gabriela e Augusto Joaquim

Construído ao longo do terrível ano de 2020, com muitas paragens, o filme conta ainda com a participação de professores e especialistas como João Barrento, que dirige a Associação de Estudos Llansolianos, Maria Etelvina Santos, Paula Morão, Diogo Pires Aurélio, utiliza bastante material do acervo da escritora e não deixa muito lugar a digressões poéticas, o que teria acontecido se tivesse convocado os poetas e artistas que cortejam Llansol. E são muitos.

Por outro lado, os criadores do filme deixam entrar todos os habitantes da casa literária, mental e emocional da escritora que, desde que em 1965, se exilou com o marido, em Lovaina, na Bélgica, onde encontrou toda uma tradição de místicos rebeldes, como as “beguinas” (monjas que nos séculos XII a XIV viviam em comunidades isoladas, afastadas da igreja católica que consideravam corrupta, e tinham práticas mais próximas do cristianismo primitivo). Entre elas estão a figura de Ana Peñalosa, mas também o mestre Eckhart, São João da Cruz, Tomás Müntzer, que a vão depois levar até Bach, Espinoza, Hölderlin, Nietzsche, D. Sebastião, Camões e Pessoa. Esta é a comunidade de MGL. Aquela que ela apresenta na sua obra fundacional em 1977, O Livro das Comunidades, que depois integrará a trilogia Geografias de Rebeldes. Apesar de ter já publicado dois livros antes é, com esta comunidade, aliada à sua leitura de místicos e filósofos que vai ganhar corpo toda a obra posterior, quase sempre atravessada por estas figuras.

Ela própria com origens nessa mítica Catalunha que o nome “Llansol” denuncia. Uma Catalunha antiquíssima, que tinha relações privilegiadas com região francesa de Languedoc, onde, na idade média também fermentou toda uma cultura mística contrária à ortodoxia da igreja Católica, os Cátaros, ou os puros. Mas também os Alumbrados que consideravam que  a mulher era a face visível de Deus, pátria do escritor Ramon Llul e terra do lirismo provençal a partir da qual nasceria depois a poesia galaico-portuguesa. É como se toda esta tradição vivesse dentro da escritora e ela vai reinventá-la com outras figuras.

Nascida na burguesia lisboeta, em Campo de Ourique, cedo começou a escrever, e data dos seus 11 anos o primeiro conto. Formou-se em Direito mas saiu para fundar um jardim de infância, pois tinha um enorme fascínio por crianças e aquela loucura que elas possuem por não estarem ainda totalmente formatadas pelo pensamento e a linguagem lógica. A partida para a Bélgica está ligada à fuga do marido Alberto Joaquim à Guerra Colonial e só regressarão a Portugal em 1984.

Este, homem da sua vida desde que se conheceram na igreja de Santa Isabel, é uma pessoa determinante também para a sua obra. Um homem silencioso e discreto que percebe e ajuda a sua genial mulher, um pouco como Agustina e Alberto Luís. Era ele que lia e discutia com ela os pensamentos, as leituras, os livros e as coisas que ela ia escrevendo, que ajudava a arrumar e organizar os livros, livros que eram parte integrante da escritora. Llansol sentia que os seus livros eram uma continuidade de si. Não havia, para ela, fronteiras materiais entre as coisas e as ideias, os tempo e o espaço, como aludimos anteriormente. Quando regressaram a Portugal, Gabriela e Augusto Joaquim foram viver para Sintra, e para aí se mudou também essa comunidade de místicos, filósofos, poetas. O casal manteve sempre uma vida àparte da sociedade, muito essencialista, ligada à terra e aos animais e a essa comunidade imaginada.

Quando morreu, a 3 de Março de 2008, a escritora deixou mais de 20 livros livros publicados, mas também milhares de páginas manuscritas e/ou datilografadas e cadernos que já deram origem a vários livros intitulados Livros da Horas. E mesmo se a sua obra é para poucos leitores, ela sem dúvida constitui um lugar cimeiro na literatura portuguesa.

“Maria Gabriela Llansol — Um Olhar Intenso Pode Incendiar o Texto” passa esta quinta-feira na RTP2 pelas 23h40. A obra da escritora está a ser editada pela chancela Assírio & Alvim. O Espaço Llansol — Associação de Estudos Llansolianos funciona em Lisboa na Rua Saraiva de Carvalho, nª8 e tem uma programação com leituras, conferências e encontros, além do estudo e fixação dos textos da escritora.