Às vezes, começamos a ver um filme e damos por nós a pensar que já o vimos antes, e muito mais bem feito, noutros filmes. É o que acontece em “Cherry”, dos irmãos Anthony e Joe Russo, que não pára de nos recordar, ao longo das suas duas horas e 20 minutos de duração, outros filmes infinitamente melhores, caso de “Nascido para Matar”, de Stanley Kubrick, “Máquina Zero”, de Sam Mendes, “No Trilho da Droga”, de Gus Van Sant, “A Vida Não é um Sonho”, de Darren Aronofsky. E ainda aquelas fitas de ação pseudo-naturalistas com muleta “social” em que o herói é levado para a droga e para o crime porque a “sociedade” foi má para ele.

[Veja o “trailer” de “Cherry”:]

Os irmãos Russo são os autores de filmes de super-heróis mastodônticos, espalhafatosos e descomunalmente lucrativos como “Capitão América: O Soldado do Inverno”, “Vingadores: Guerra do Infinito” ou “Vingadores: Endgame”. Como se não lhes bastasse serem campeões do cinema populista e escapista de dimensão planetária sobre criaturas de ficção com super-poderes, Anthony e Joe Russo querem também fazer filmes “realistas” e “importantes” sobre pessoas de carne e osso com problemas, traumas e dores. Vai daí, adaptaram para a Apple TV+ “Cherry”, o romance parcialmente autobiográfico de Nico Walker.

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[Veja uma entrevista com Tom Holland:]

Tom Holland interpreta o protagonista, um universitário de Cleveland que, depois da namorada lhe anunciar que se vai transferir para uma escola no Canadá, decide deixar de estudar, casa-se com ela à pressa e alista-se de impulso no Exército, indo parar ao Iraque como enfermeiro, onde ganha a alcunha do título. Cherry volta da guerra a sofrer de Stress Pós-Traumático, começa a desatinar, a meter-se nas drogas e nos comprimidos, arrastando consigo a mulher, e para manter o vício e pagar aos “dealers” o dinheiro que lhes fica a dever, dedica-se a assaltar pequenos bancos. Segue-se a expiação na cadeia e um final “redentor” tão fofinho como postiço.

[Veja uma entrevista com os irmãos Russo:]

Não há como lhe dar a volta. “Cherry” é uma interminável parada de clichés, tiques cinematográficos, poses de “comentário social”, situações feitas e personagens-tipo dos filmes de alienação existencial, de guerra, de “junkies” e de desamparo abjecto, filmada com uma solenidade flácida, uma afetação visual, sonora e dramática que descamba no ridículo (ver o inenarrável plano do exame retal) e toda a subtileza de Thor a manejar o seu martelo. Para os irmãos Russo, mais é sempre melhor. E isso fica bem claro na sequência em que Cherry, depois de assaltar um banco e entregar o dinheiro ao seu “dealer”, se senta na beira do passeio a injetar-se num pé, enquanto a rua se enche de carros da polícia, tudo em câmara lenta e ao som de uma ária de uma ópera de Puccini.

É compreensível que Tom Holland não queira ficar prisioneiro da limitadísima personagem de Peter Parker/Homem-Aranha nas fitas de super-heróis. Mas não vão ser filmes demonstrativos, pomposos e flatulentos como este “Cherry” (ou o anterior “Sempre o Diabo”) que lhe darão credibilidade e abrirão horizontes. Quanto a Anthony e Joe Russo, farão melhor em voltar para o Universo Marvel, porque ao menos só se estraga uma casa.

“Cherry” já está disponível na Apple TV+