Título: Quintas e Solares de conceção renascentista e maneirista: Lisboa, Tomar, Coimbra e Porto
Autor: Amílcar Gil Pires, com Inês Pires Fernandes e outros
Prefácio e revisão científica: Paulo Pereira
Editor: Caleidoscópio
Design: Marco Medeiros
Apoio: Fundação das Casas de Fronteira e Alorna
Páginas: 396, ilustradas
Preço: 26,50 €

A capa de “Quintas e Solares de conceção renascentista e maneirista: Lisboa, Tomar, Coimbra e Porto”

Depois de um primeiro volume geograficamente dedicado a Évora, Azeitão e Sintra, com 23 pequenos estudos monográficos (2019), o professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa Amílcar Gil Pires, e a sua equipa de colaboradores (estudantes, presume-se, a serviço deste projecto de investigação), aborda neste livro 30 outras quintas de recreio e solares que além dos locais anunciados em título percorre também Oeiras e Loures, Vila Franca de Xira e Torres Vedras — ensaiando, deste modo, um mapeamento continental que tem ou pretende ter muito de “estado da arte”, ainda que lacunas informativas rapidamente notórias ponham em risco a validade destes objectos como obras de referência actualizadas à data da sua publicação.

Bem sei que entre a pesquisa concluída e os livros saídos da tipografia ainda frescos de tinta decorrem vários meses por necessidade absoluta dos trabalhos de produção gráfica, para mais exigente que seja e esta é, e que esse afã não facilita actualizações de última hora, todavia por vezes absolutamente imprescindíveis, quando o empenho em fazer bem é máximo. Isso é uma coisa, outra coisa — e colhe bastante mal — é quando, logo no primeiro edifício considerado, o Palácio Távora-Galveias, ao Campo Grande, em Lisboa, nada seja dito acerca da longa campanha de reabilitação terminada dois anos antes, em Junho de 2017, ou que relativamente ao segundo, o Palácio dos Marqueses de Fronteira, o excelente número monográfico da revista Monumentos (n.º 7, Setembro de 1997), produzido precisamente após restauro historicamente muito elucidativo, não conste da respectiva “bibliografia específica” (p. 63). O problema vem de trás. Já no volume anterior, publicado em Novembro de 2019, sobre a Quinta e Palácio da Bacalhoa, em Azeitão — jóia máxima desta arquitectura — as fotografias do autor eram de 2006 e a bibliografia mais recente datada de 2008 e nada mais do que uma dissertação de mestrado inédita, as fotografias da Quinta da Conceição, ali perto, são de 2012 e paradoxalmente anteriores ao amplo restauro do edifício, e à bibliografia sobre a Quinta dos Duques de Aveiro, também em Vila Nogueira, faltou o estudo de 30 páginas que João Vieira Caldas e Maria João Pereira Coutinho lhe dedicaram num valioso e certamente bem divulgado na academia colóquio realizado na Casa da Baía, de Setúbal, a 18-20 de Abril pretérito, e publicado logo em Julho, num volume colectivo, com um título que não deixa dúvidas a ninguém: Património e Arquitectura Civil de Setúbal e Azeitão… Sobre a Quinta da Penha Verde, em Sintra, também se esqueceram de referir um trabalho de Maria Teresa Caetano (revista em-linha “Tritão”, 2012).

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O crivo dito científico de empreendimentos deste calibre, e a sua utilidade futura (ao menos como “sebenta” escolar, mas rigorosa por exigência académica), não podem compadecer-se com falhas, lapsos ou negligências deste tipo, que até diletantes (hélàs!) conseguem assinalar-lhes — e o próprio editor, que é mais do que um industrial de livros, haveria de fazê-lo também…

Além disso, causa estranheza que sendo o declarado propósito deste levantamento “evidenciar o seu lugar no contexto da cultura arquitectónica portuguesa, numa perspectiva de sustentabilidade integrada — patrimonial, económica, ambiental e cultural” (introdução, p. 27), nada seja dito ou tenha sido averiguado quanto à mais ou menos recente adaptação destas quintas de recreio a modalidades de turismo de habitação, aluguer para eventos (incluindo casamentos), visitas pagas como recurso fundamental, entre outros ou na ausência de outros, para a sua contínua conservação e viabilidade. Assim sucede — fui saber — com o Paço da Ega, em Condeixa-Nova, a Quinta da Anunciada Velha, em Tomar, a Quinta do Torneiro, em Porto Salvo, a Quinta dos condes de Valadares, em Loures, a Quinta de Montezelo, em Gondomar, e a Quinta de Recarei, dita do Alão, em Leça do Bailio (e no volume anterior, a Quinta das Torres e a Quinta da Conceição, ambas em Azeitão, a Quinta do Senhor da Serra, em Belas, e a Quinta da Ribafria, em Sintra, visitável desde 2015, a Quinta da Capela, um hotel de cinco estrelas na estrada velha de Colares, ou a Quinta do Molha Pão, em Belas, conhecida pela sua agricultura biológica).

Importava ter reconhecido a decisão virtuosa de as respectivas autarquias locais as adquirirem, restaurarem e reabilitarem para si, como sucedeu em Vila Franca de Xira, com a Quinta da Piedade, na Póvoa de Santa Iria, ou, mediante contratos com privados, cumprirem o mesmo objectivo — protegendo imóveis classificados como de interesse público (no segundo caso) e, além disso, atraindo verdadeira economia para esses lugares —, como o grupo hoteleiro Vila Galé, para o Paço dos Arcos, na marginal em Caxias, ou como a Oeiras International School, para a Quinta de Nossa Senhora da Conceição, em Barcarena. Ou elogiando o caso, a meu ver exemplar e precursor, da quinta de recreio em Camarate — a Quinta Alegre, imóvel de interesse público desde 1962 —, adquirida (1983) e reabilitada (2017) pela Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de Pedro Santana Lopes para servir de residência assistida a velhos funcionários seus e residência de estudantes. Ou o da Câmara Municipal do Porto, no acordo que fez com o banqueiro Pedro Torcato Álvares Pereira para recuperar e criar na Casa São Roque, antigo palacete do comerciante António Ramos Pinto (1854-1947), um centro de exposições para a sua colecção de arte contemporânea. Não saberá o professor da Faculdade de Arquitectura autor deste livro que a Quinta de Atães, em Gondomar, na margem do rio Douro, que em Agosto de 2012 já estava à venda quando a visitou e fotografou (cita, de resto, o respectivo descritivo imobiliário), tem sido equacionada como “residência assistida, senior resort, “hotel de charme”, etc.”, como consta do anúncio que desde 2015 a coloca à venda por 2,8 milhões de euros? Ou será que a visitou há quase dez anos e nunca mais lá voltou, sequer no decurso deste “projecto de investigação” financiado pelo Estado, de que é o responsável?…

Quinta Alegre: um futuro útil

Surpreende que o mesmo autor duma comunicação sobre “A quinta de recreio enquanto pólo de desenvolvimento rural […] séculos XVI a XIX” (UTAD, Vila Real, Outubro de 2017), diante das 11 (entre 30) casas senhoriais em ruína terminal no panorama geográfico referido no presente volume, muito pouco ou mesmo nada esclareça ou acrescente ao que pôde colher de outrem sobre as condições socioeconómicas em que, caso a caso, essa decadência extrema pôde acontecer — há também duas quintas dadas como “degradadas”, a de Cardiga, na Golegã (que D. Afonso Henriques doou aos Templários, p. 252), e a de Sete Capelas, em Valbom, Gondomar —, e, mais ainda, aponte caminhos gerais para que actividades económicas e culturais mantenham, e classificações patrimoniais salvaguardem, aqueles outros edificados e envolvências ajardinadas que ainda persistam neste tipo de arquitectura com valor histórico tão assinalável, posto em evidência por arquitectos estudiosos como Albrecht Haupt, George Kubler, Ilídio de Araújo, Paulo Varela Gomes, Hélder Carita e Aurora Carapinha, entre outros.

O infeliz caso da Quinta do Lapuz, também conhecida como Casa da Arreeira, em Tentúgal (pp. 307-16), com a sua distintiva janela geminada manuelina, parece prova eloquente da corrosiva lentidão burocrática: está a cair aos pedaços (e uma vez mais as fotografias são, incompreensivelmente, de 2013…), embora classificada como imóvel de interesse público, num processo iniciado em 1996 e concluído catorze anos depois, em Dezembro de 2012. De resto, como esperar bom senso, quando a Quinta de Santa Cruz do Bispo (pp. 341-50), em Matosinhos, casa de campo do bispado do Porto com restauro dirigido por Nicolau Nasoni e tida como uma das “mais belas propriedades de Espanha, Toscana e Roma”, viu delapidados os seus buxos centenários e depois saqueados os seus azulejos, até que, património do Estado, acolheu em 1935 e até hoje uma colónia penal… Ou quando a Quinta de Valflores, em Santa Iria de Azóia (pp. 145-58), mandada erguer por Jorge de Barros, feitor régio na Flandres, classificada imóvel de interesse público em 1982, proposta sem sucesso para monumento nacional nove anos depois, foi objecto de estudo por Rafael Moreira em 1994 (p. 282), viu a sua zona especial de protecção ser alterada em 1997 para facilitar o trajecto da A1, foi adquirida pela Câmara Municipal de Loures em 2006, a qual, só perante a perturbante classificação, em 2015, desse monumento como “um dos 14 mais ameaçados” pela organização europeia do património Europa Nostra, deu início cinco anos mais tarde a um processo de reabilitação que ainda decorre, aliás com a participação muito qualificada, entre outros, dos arquitectos João Vieira Caldas e Aurora Carapinha e é acompanhado a par e passo por dinâmica página de rede social. Outro caso em que a informação constante neste livro está dramaticamente desactualizada.

O próprio autor proclama aquilo que manifestamente não faz. Considera que “os casos em estado de ruína, ou muito perto disso, de incontestável valor histórico e patrimonial, correm o risco de desaparecer”, sendo por isso “urgente reunir todos os esforços para recuperar, preservar e dinamizar estes complexos arquitectónicos da paisagem, numa perspectiva de manutenção no tempo de lugares de excepcional valor e beleza”, num processo de reconhecimento científico e de valorização “só possível através de processos de investigação pluridisciplinares que façam um inventário qualificado, de forma a proporcionar a sua divulgação e despertar o interesse por parte de entidades promotoras, públicas ou privadas, para investimento na sua reabilitação (económica e financeiramente viável), o que possibilitará a sua adequação a novos usos funcionais e a um usufruto de carácter contemporâneo” (p. 27). Quando ficaram de fora desses supostos “inventário qualificado” e “investigação pluridisciplinar” grandes massas documentais conservadas em arquivos distritais e na própria Torre do Tombo, quando o rastreio bibliográfico não foi à indexação de periódicos locais, regionais ou de publicações da especialidade ou de história regional e municipal, quando os fundos bibliográficos, arquivísticos e fotográficos da Biblioteca de Arte da Fundação Gulbenkian não foram explorados uma só vez, quando o remissivo para as publicações em-linha da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais representa o grosso da informação compilada, ela própria velha de décadas, quando faltam resultados de campanhas arqueológicas municipais, quando as bibliografias são omissas até do mais evidente (caso do Palácio Fronteira, que referi), é muito de duvidar que o presente livro mereça o atributo de “inventário qualificado” ou se distinga — como pretende — como exemplo de “investigação pluridisciplinar”.

Fotógrafos amadores de inícios do século XX eram, eles próprios, bastantes vezes, proprietários de quintas e solares, que se visitavam reciprocamente. A família real também fotografou com abundância. Eis todo um campo interessantíssimo que aqui também ficou por explorar… Jorge Abraham de Almeida Lima (1853-1934), por exemplo, registou imagens do Palácio Fronteira e da Quinta do Bonjardim — eventualmente outras —, as primeiras foram mostradas no Museu do Chiado em 1997, estão no respectivo catálogo, e como as demais conservadas na Torre do Tombo. Que Amílcar Gil Pires e a sua equipa de investigadores as ignorem, parece-me inaceitável. Menos não é mais. Não pode ser.