Os duelos de audiências são já há muito tempo uma realidade normal no mundo da televisão mas nos últimos tempos as duas principais estações privadas do país, SIC e TVI, elevaram a fasquia dessa luta pela atenção dos telespectadores. As mudanças de lado de Cristina Ferreira foram ponto alto dessa disputa — tanto na mudança da TVI para a SIC como no mais recente movimento inverso –, mas a troca de Queluz por Paço d’Arcos do chef Ljubomir Stanisic também fez correr muita tinta. Este domingo estreia no terceiro canal o “trunfo” Hell’s Kitchen, protagonizado pelo recém estrelado Stanisic, e essa aposta de Daniel Oliveira vai chocar de frente com a mais recente cartada de Cristina, o programa de talentos “All Together Now”.  O que se pode esperar deste duelo? Vale a pena analisar ambos os formatos e perceber o seu contexto no “prime time” das duas estações televisivas.

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O sucesso cozinhado por Gordon Ramsey

Se Gordon Ramsey é hoje uma super-estrela mediática mundial, bem o pode agradecer ao Hell’s Kitchen. Foi em 2004 que a britânica ITV decidiu apostar neste formato e no rabugento cozinheiro que até então pouco ou quase nada tinha feito à frente de uma câmara — ao contrário da vida nos fogões, que já contava com inúmeros sucessos e estrelas Michelin. A premissa do primeiro programa de sempre (estreou a 23 de maio de 2004 e terminou a 6 de junho do mesmo ano) deste que viria a ser um dos maiores franchises televisivos do mundo era, porém, um pouco diferente daquilo que hoje conhecemos. Em vez de cozinheiros semi-profissionais a combater pela vitória, ronda após ronda, o objetivo passava por ensinar algumas celebridades a cozinhar e funcionar dentro de uma cozinha profissional.

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O resultado, como seria de esperar, foi ouro televisivo: alguns concorrentes ficaram furiosos com Ramsey — que já na altura era fiel ao seu estilo rufia –, envolveram-se em situações mais acesas, e não se poupou nos gritos e palavreado menos próprio. Foi um sucesso. O único problema? Os EUA tomaram conhecimento tanto de Ramsey como do formato em si e quiseram-no só para eles. A versão britânica continuou sem Gordon durante mais três temporadas (só a segunda teve concorrentes anónimos, todas as outras contaram com celebridades), tendo as últimas duas granjeado algum sucesso, também, graças ao homem que escolheram para substituir o chef escocês — o enfant terrible Marco-Pierre White, antigo mentor de Ramsey.

[O primeiro episódio da primeira série de Hell’s Kitchen]

Foi logo em 2005, um ano depois da estreia britânica, que o Hell’s Kitchen se mudou para as televisões norte-americanas pelas mãos da Fox — canal que ainda hoje detém a transmissão do programa. Gordon Ramsey, claro, veio com ele. A adaptação desse programa para o mercado norte-americano trouxe uma grande diferença em relação ao antecessor no Reino Unido: os concorrentes eram cozinheiros profissionais ou semi-profissionais que se candidatavam a conquistar um prémio monetário de 250 mil dólares e à posição de chef num dos vários restaurantes de Ramsey nos EUA. Tudo o resto era igual: o grupo de concorrentes era dividido em duas equipas e a cada episódio todos teriam de fazer um serviço de jantar, a equipa a quem o dito corresse pior teria de eliminar um dos elementos. No final, quando já só sobrassem cinco concorrentes, todos juntavam-se numa equipa só e a luta individual pelo vencedor arrancava.

A temporada de estreia foi um grande sucesso, com quase sete milhões de pessoas a assistir ao episódio de arranque, a 30 de maio de 2005 (o último, transmitido a um de agosto do mesmo ano, teve quase nove milhões). A própria crítica ficou rendida, havendo uma em particular, no San Francisco Gate, que dizia que Ramsey estava tão bem no seu estilo agressivo que conseguiria “pôr o Simon Cowel [o rabugento britânico que abriu caminho para Gordon nos EUA com o American Idol] a fazer bolinhos em cinco minutos”. Desde essa altura até então não houve um ano sem uma temporada de Hell’s Kitchen, sempre com Ramsey como timoneiro — acabam de ser confirmadas pela Fox, por exemplo, mais duas temporadas.

Escusado será dizer que tudo isto é bom presságio para a estreia deste domingo, onde Ljubomir Stanisic ocupa o lugar do chef britânico tendo já consigo um excelente capital mediático ganho pelo sucesso de “Pesadelo na Cozinha”, programa que protagonizou quando ainda estava na TVI, que foi um sucesso estrondoso e que lá fora também é feito por Gordon Ramsey. O que se pode esperar desta reencarnação portuguesa do Hell’s Kitchen (o programa já teve versões em 18 países, da Albânia à Indonésia)? Todos os cuidados que a pandemia obriga, claro: utilização de máscara, testagem e isolamento dos concorrentes ainda antes de terem começado as gravações e mais isolamento ainda garantido pelo facto de que, desde que começaram as filmagens, todos os concorrentes viveram juntos na mesma casa. Mas há mais. Enquanto no formato original com Gordon Ramsey é mais que comum ver o chef atirar pelo ar um prato que não ficou tal e qual como queria, com Ljubomir a comandar o barco há uma maior atenção dada ao desperdício alimentar, por isso não estranhe se não vir pratos completos serem atirados para o lixo — tudo o que sobrar será reaproveitado pela produção. Ah! Já agora: aqui o prémio será um emprego num dos restaurantes do chef e um carro topo de gama.

“All Together Now”, o fenómeno mundial

“Canta Comigo”, “A Otro Nivel: Canta Conmigo”, “Sing Mit Mir”, ou “Cântă acum cu mine” são apenas algumas das várias identidades assumidas noutros cantos do mundo (Brasil, Colômbia, Alemanha e Roménia, respetivamente) pela última grande aposta da TVI, que estreou no passado dia sete de março. Apesar dos diferentes nomes, porém, a premissa que lhe dá corpo ao novo “All Together Now” é sempre a mesma. Trata-se de um programa de talentos musicais em que a cada episódios vários concorrentes “anónimos” são convidados a atuar perante uma plateia de 100 jurados, todos eles de alguma forma ou de outra associados ao mundo mediático e/ou musical. No final das atuações de 30 segundos, os jurados fazem a sua votação e os melhores vão seguindo em frente no concurso até sobrar só um, o grande vencedor (cujo prémio ainda está mantido no segredo dos deuses). Mas vamos olhar um pouco para trás.

À semelhança de Hell’s Kitchen, curiosamente, o “All Together Now” também é uma criação britânica, também faz parte do portfólio da produtora televisiva Shine Ibéria e também é sinónimo de grande sucesso — se bem que não imediato. Foi há pouco mais de três anos que na BBC One surgia o concurso que queria voltar a agitar o mercado dos programas de talento musicais, que desde o aparecimento do The Voice não tinha tido nenhuma grande inovação. Na prática a receita base era a mesma dos seus antecessores — cantores amadores ou pouco conhecidos que atuam perante um conjunto de jurados –, a diferença era mesmo o enorme painel de avaliadores composto por 100 pessoas ligadas ao meio. A grande mais valia encontrava-se precisamente aí, no cruzar e esgrimir de opiniões dos jurados. Para apresentadores foram escolhidos Rob Beckett e a ex-Spice Girl Geri Halliwell, dupla que se manteve durante as duas edições do programa no Reino Unido. Só duas, exatamente: a junho de 2019 a BBC anunciava que ia abandonar o projeto. Apesar de não ser totalmente unânime, de uma forma geral a critica britânica arrasou o formato. No The Guardian, por exemplo, escreveu-se: “É basicamente uma espécie de karaoke televisionado depois da tequila já ter sido aberta, os egos libertados e enquanto alguém vai vomitando para dentro do balde do gelo num canto.”

Apesar do curto prazo de validade em Inglaterra o verdadeiro sucesso do “All Together Now” comprovou-se a partir daí, quando no ano de estreia foi possível vender o formato para 10 países, um recorde absoluto, como explica a publicação britânica especializada em televisão Broadcast Now. Hoje, contando com a versão portuguesa, o programa já foi adaptado para 14 países, e no Brasil e na Dinamarca, especialmente, conquistou resultados impressionantes: os valores de share aumentaram 30 e 160 porcento, respetivamente, em comparação com os programas que antes deles ocupavam o mesmo espaço horário. Este valor, diz a mesma fonte especializada, é particularmente preponderante na faixa etária entre os 16 e os 34 anos. Não deixa de ser curiosa esta característica pouco comum de um programa fazer mais sucesso fora do sítio onde foi criado — como disse à Forbes Brasil Juliana Algañaraz, a CEO da Endemol Brasil. “Temos experiências de formatos que lá fora não deram certo e adaptamos no Brasil, deu certo aqui e depois conseguimos exportar de novo e funcionam.  […] ‘Canta Comigo’, o próprio ‘Big Brother’, são formatos que vieram de fora e mudaram aqui, ganharam uma nova cara”, afirmou.

Por cá, a ideia de sucesso parece querer manter-se: segundo a própria Shine Iberia, a grande aposta da TVI que marca também o regresso de Cristina Ferreira ao horário nobre, enquanto apresentadora, conseguiu segurar a atenção de 1,2 milhões de pessoas, somando ainda um share de 25,5 (que chegou aos 29,5, às 23h10). A SIC tem portanto um adversário à altura, apesar de Cristina já ter afastado a pressão num artigo recente onde falou do programa de Ljubomir: “Eu sei que tenho um produto extraordinário, não vi ainda o produto do Ljubomir. Tendo em conta aquilo que conheço dele, será certamente um registo no seu estilo e também ele um programa extraordinário. São os portugueses que decidem, podem ver aquele que quiserem. Aliás, podem ver os dois se assim o entenderem. Eu não mudei uma vírgula neste programa porque no outro lado ia ter o Ljubomir, tal como não mudo em nenhum outro programa de televisão”.

Os 100 jurados do “All Together Now” português.

Cristina chegou a pronunciar-se ainda sobre a polémica que este “All Together Now” já levantou, mesmo tendo pouco mais de uma semana de vida aos olhos do público. Um surto de Covid-19 foi detetado na versão brasileira do programa, informação confirmada pela própria Endemol Brasil via comunicado: “No último faseamento de testagem realizada na equipa do ‘Canta Comigo’ identificámos um total de 10 casos positivos por COVID-19, sendo os profissionais prontamente afastados e a equipa sendo testada novamente para seguirmos com o máximo de segurança”, explicaram. Apesar da mesma produtora ter garantido que todas as medidas de segurança foram cumpridas, a notícia chegou a Portugal e levantou preocupações — que foram prontamente esclarecidas pela apresentadora e diretora de Entretenimento e Ficção da TVI.

“As atividades televisivas continuam, não foram proibidas, aqui e no mundo inteiro. Este mesmo programa está a ser gravado em períodos de confinamento noutros países, da mesma forma. Estão a ser cumpridas todas as medidas de segurança que considerámos necessárias”, reforçou. Cristina chegou mesmo a comparar o programa com o funcionamento de “fábricas onde trabalham 300 pessoas”, que não pararam de trabalhar por causa da pandemia mas reforçaram sim as suas medidas de segurança. “Acho que entendem que aquilo que menos queremos na vida é que haja uma infeção generalizada de uma série de profissionais que fariam com que a nossa empresa tivesse de fechar momentaneamente. Mais do que qualquer outra pessoa, queremos que as coisas corram da melhor forma.”, afirmou. Para o garantir foram tomadas uma série de medidas de prevenção, começando logo pelo local de filmagem, a Altice Arena, espaço grande o suficiente para manter distanciamentos de segurança. Além disso foram criados vários camarins e pequenas salas onde todos os jurados podem estar de forma isolada, os membros do júri tiveram ordem para “entrar em cena” em pequenos grupos, os mesmos estão em cubículos separados por acrílicos e antes mesmo de terem o ok para entrar na Altice Arena têm obrigatoriamente de acusar negativo nos testes feitos ao momento.

A luta pelo domingo à noite

Este verdadeiro duelo pelos domingos à noite, principalmente, não deixa de ser interessante de analisar de um ponto de vista mais estratégico. O senso comum diria que o domingo, por ser véspera do regresso ao trabalho para a maioria das pessoas, não seria uma data favorável para apostar forte em programas televisivos que muitas vezes acabam já perto ou depois da meia noite. Ainda assim, a professora e investigadora da Universidade Nova de Lisboa Celiana Azevedo, especialista em Ciências da Comunicação, desfaz essa crença. “No sábado as pessoas podem sair mais de casa”, começa por dizer, daí que no domingo, precisamente por ser véspera do início da semana, há uma maior tendência para se ter menos planos, explica ao Observador, referindo-se a um contexto genérico, sem uma pandemia em fundo. “A maioria dos portugueses tende a levantar-se mais tarde ao domingo e por isso mesmo acabam por se deitar mais tarde também”, explica a professora. Ora é por isso mesmo que esse dia “é muito cobiçado, mesmo quando comparado com outros dias da semana”. E basta olhar para a programação destes dois canais, por exemplo (apesar de se poder ver o mesmo em muitos outros).

Ljubomir Stanisic já provou em “Pesadelo na Cozinha” ter talento e à vontade para ser protagonista de TV.

No período do chamado “horário nobre” ou “prime time”, que dura entre as 20h e a meia-noite, os dois canais arrancam com o sempre apelativo jornal da noite — um garantido e já tradicional íman de audiências — que termina com os espaços de comentário de duas figuras mediáticas e bem conhecidas do público português, de um lado Luís Marques Mendes (SIC) e do outro Paulo portas (TVI).  Sobre estes comentadores Celiana refere que por não serem especialistas em temas concretos mas sim “comentarem tudo” — algo que diz ser muito comum na televisão portuguesa –, a sua capacidade de atrair “acaba por se basear na personalidade e não propriamente no conteúdo, algo que puxa um pouco mais pelas pessoas”.  Este momento da programação serve como âncora para um público menos jovem enquanto o que vem a seguir tenta lançar o anzol a faixas mais novas do universo de espetadores. Programas como o “Isto é Gozar Com Quem Trabalha”, de Ricardo Araújo Pereira, ou o Big Brother com Cláudio Ramos e Teresa Guilherme piscam o olho precisamente a essa faixa mais jovem. As próprias novidades, “Hell’s Kitchen” e “All Together Now”, seguem o mesmo caminho.

A importância deste dia no contexto televisivo, onde Celiana relembra que “tudo gira à volta do lucro”, vê-se até nos valores pedidos pelo espaço publicitário disponível — “é um momento caro em termos de publicidade”. Isso justifica a aposta nestes formatos de grande investimento e até em conteúdos especiais como aquele que a SIC conseguiu garantir e irá transmitir após a estreia de Ljubomir, a polémica entrevista de Meghan Markle e o Príncipe Harry com Oprah Winfrey.

[A SIC garantiu para o mesmo domingo de estreia de Hell’s Kitchen a transmissão da polémica entrevista de Harry e Meghan Markle]

Mas e o impacto da pandemia ou dos novos outlets mediáticos? Como influenciam este universo? “A evolução das tecnologias de comunicação mudou muito isso tudo. Antigamente havia mais o conceito da família reunida à frente da televisão mas as tecnologias vieram fragmentar essa realidade”, indica a professora e investigadora, que se refere não só às redes sociais mas também ao sem fim de plataformas digitais de streaming disponíveis hoje em dia. Apesar de haver muito a noção — senso comum, lá está — de que se vê cada vez menos televisão, a verdade é que pelo menos no universo português essa realidade não é tão líquida: “O português vê muita televisão, ela ainda é hegemónica na procura de informação, por exemplo, apesar de faixas mais novas [e mais pequenas] começarem a procurar informar-se nas redes sociais”. Com o confinamento causado pela pandemia, “estudos feitos no ano passado demonstram que nunca se viu tanta televisão em Portugal”, ou seja, a tendência já existente saiu reforçada.