Livro: O marinheiro que perdeu as graças do mar
Autor: Yukio Mishima
Editora: Livros do Brasil
Páginas: 136
Preço: 15,50€

A capa de “O Marinheiro que Perdeu as Graças do Mar”,de Yukio Mishima

Este romance de Mishima, publicado pela primeira vez em 1963, traz um plano radical pelas mãos de crianças despeitadas. A ofensa que lhes é feita mostra não apenas a brutalidade de um pacto de honra, mas também a ideia do amor como fragilidade humana.

Numa prosa limpa, escorreita, intensa, não raras vezes violenta, apaixonada sem ser sentimental, Mishima apresenta dicotomias sem ser simplista. Mete o leitor à mesa com as personagens, põe-no nas cabeças delas e, não dando lições, deixa-o tirar ilações, ao mesmo tempo que lhe permite ser várias cabeças.

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Noboru é um rapaz de 13 anos. Órfão de pai, vive com a mãe, Fusako, que, no início do enredo, o tranca no quarto durante a noite. Lá dentro, o menino acaba por descobrir um furo na parede que lhe permite espiar a mãe.

Quando Fusako conhece o Ryuji, marinheiro, segundo piloto do navio Rakujo, e se envolve com ele, Noboru fascina-se com as suas histórias de aventuras no mar, respeita-o pela coragem e pela vida que tem. Ryuji é um homem do mar, não por especial apelo da água, mas por desprezo pela terra. Nas suas viagens, passa por todo o mundo:

“Enquanto muitos decidem ser marinheiros por gostarem do mar, Ryuji fora guiado por uma antipatia pela terra. O interdito imposto pelas Forças de Ocupação, proibindo a navegação de alto-mar aos navios japoneses, tinha sido levantado na altura em que concluíra o curso da marinha mercante e embarcou no primeiro cargueiro que, desde a guerra, se fazia ao mar, com destino à Formosa e Hong Kong. Depois disso, foi à Índia e ocasionalmente ao Paquistão.” (p. 18)

À medida que a relação entre Fusako e Ryuji evolui, o olhar de Noboru muda, e mescla-se o respeito pelo marinheiro com os ciúmes pelo homem que lhe rouba a mãe. Mais tarde, Noboru repete o seu método de espionagem e vê Fusako na cama com Ryuji. Para além disso, o homem que viu como heróico, guerreiro contra as ondas, conhecedor do mundo, vulgarizou-se e trocou a epopeia pela banalidade da vida e pela lassidão da terra. A partir daí, começa a alimentar a raiva por Ryuji, que se torna tema de conversa entre o seu grupo de amigos, uma espécie de gangue filosófico que gira em torno do ódio pelos adultos e, em especial, pela figura paterna. Incomodados por serem vistos como pequenos inocentes, longe dos adultos, são até perturbadores. Juntos, dedicam-se à pulsão de grupo, ao animalismo da crença, ao reavivar de um ódio. Dedicam-se a uma disputa que mais ninguém vê.

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O grupo tem um chefe, conhecido por Chefe, que apela directamente ao intelecto e defende que o aparelho genital serve para copular com as estrelas da Via Láctea. Esta e outras bastam para se impôr entre os amigos: “Esta espécie de delírio sem substância encantava-os e eles desprezavam os seus companheiros de escola, todos uns coitados, uns sujos, que rebentavam de curiosidade sobre o sexo.” (p. 46). Aos 13 anos, já o Chefe leu todos os livros que tinha em casa e está sempre aborrecido. Esta intelectualização do grupo contrasta com a imagem da violência que perpassa, já que o grupo funciona num estado de semi-loucura ideológica, com tudo fundamentado, tudo explicado ao leitor, ainda que o fundamentalismo fique ali escarrapachado, e se possa então configurar a imagem de um grupo de adolescentes maculados pela ideia de grandiosidade e não engrandecidos pela racionalidade que apregoam entre si.

O grupo parece treinar-se numa cúpula moral, estabelecendo os seus preceitos como um gangue. Maquinando-se, Noboru chega, a dada altura, a ter vergonha pela sua culpa, já que esta punha em causa a utilidade dos treinos de “despaixão absoluta”. É esta ideia de despaixão que acabará por justificar que o amor seja visto como fragilidade humana, e que não se possa aceitar um pai. Ao mesmo tempo, o facto de serem implacáveis é sempre apresentado como justiça, exactidão e racionalidade, enquanto, para o leitor, subsiste a ideia da pressa do estado de paixão, no caso pelo ideal inventado.

O romance centra-se na dicotomia entre terra e água, no fascínio inicial que Noboru sente pela imagem épica que faz de Ryuji, e depois na forma como a relação deste se desenvolve com Fusako até se ver numa situação em que assume o papel de pai. Mesmo odiando “a imobilidade da terra, as superfícies eternamento inalteráveis” (p. 18), Ryuji abandona o mar pelo amor num sítio estático.

E Noboru, no início, só tem fascínio, diz aos amigos:

“Aquele marinheiro é formidável! É como um animal fantástico saído do mar a escorrer água. Ontem à noite vi-o ir para a cama com a minha mãe.” (p. 42)

O gangue de Noboru, por sua vez, não fica impressionado, e o Chefe ainda lhe diz:

“Um tipo desses nunca faz nada. O mais certo é andar atrás do dinheiro da tua velha; o terrível dele é só isso. Primeiro chupa-lhe tudo quanto puder e depois bang, bang, até à vista, minha senhora… isso é que é o terrível dele.” (p. 41)

Em causa, parece estar tão-só o facto de Ryuji ser adulto. Mais tarde, o grupo vê como uma ofensa moral aquela assunção de papel de pai, já que consideram que o mundo dos adultos, onde se inclui a parentalidade, é um estorvo para o progresso dos filhos, que ainda por cima carregam os sonhos que os mais velhos depositam neles. Assim, pais e professores são apresentados como inimigos:

“E a sociedade, basicamente, não tem qualquer sentido, é apenas um banho romano misto. E a escola, a escola é a sociedade em miniatura: é por isso que nos estão constantemente a dar ordens. Um punhado de homens cegos diz-nos o que temos de fazer, retalha-nos as nossas imensas capacidades.” (p. 43)

Para mais, encaram o facto de Ruyuji se ter transformado num pai como uma traição. Estando a engrenagem quebrada, o trabalho do grupo é pô-la no sítio. O ponto alto do romance será o da frieza e da crueldade de um grupo de crianças. Com 13 anos, não apenas sentem a propensão para a violência como têm a necessidade de a concretizar. Assentes num fundamentalismo que cria o maniqueísmo velhos contra novos, pais contra filhos, não olham a meios para levarem a guerra a sério. Alimentam-se do ódio, custa-lhes ver para além dele, e acham que o que o motiva merece sofrer as consequências.

Assim, contra a nova figura de pai, o grupo de miúdos monta um plano de vingança, numa altura em que ainda não podem responder legalmente pelos seus actos. Também isto é motivo de raiva: afinal, a lei não foi feita para seu benefício, apenas para os adultos expressarem esperanças e para representarem sonhos que nunca puderam realizar. Contudo, será essa a única hipótese de agirem em nome da honra atingida.

Numa vingança cruel e fora de tom, levam a cabo o plano radical e bruto, pesem embora algumas hesitações iniciais, e o leitor sente o desconcerto, o desfasamento, a inevitabilidade da pouca razão, o romantismo da emoção, uma pressa muito jovem, e vira as páginas sabendo que o desastre está à frente.

Sem complacências, Mishima criou personagens que marcam, pôs a prosa ao serviço do efeito e mostrou a brutalidade com que a guerra polui quem vive, assim como os limites quebrados por uma questão de honra. No final, subjaz a ideia de um fundamentalismo absurdo, sem ponta de razão, e o leitor confronta-se com a irracionalidade, ainda que tenham sido apresentadas as razões dos agentes.