A 47ª edição do Portugal Fashion é algo de inédito. Faseada no tempo e exclusivamente virtual, arrancou na última quinta-feira mais uma ronda pelas propostas dos criadores de moda nacionais para o próximo outono-inverno. Nas coleções, encurtadas pelo contexto adverso que se prolonga há um ano, exibem ânsias de regressar à normalidade, mas também o discurso introspetivo próprio de quem, de repente, se viu confinando às paredes de um atelier ou até da própria casa, privado das habituais viagens e referências que alimentam o léxico criativo.
“Não há forma de fugir a isto, chegou ao mais íntimo de nós”, desabafa Katty Xiomara, um dos três nomes que figurou neste primeiro dia de apresentações digitais, em conversa com o Observador. Intimidade é uma boa porta de entrada na coleção “Aurora”, apresentada através de uma curta-metragem, escrita e musicada por Cati Freitas e que conta ainda com a participação de Sandra Barata Belo, João Salcedo, João Paulo Peças e Cátia Nicolau.
“É uma realidade que obviamente teve impacto na forma como trabalho. Dificultou todo o processo técnico e produtivo, mas sobretudo o criativo. Deixámos de ter acesso ao mundo de forma tão aberta, por isso tive de beber inspiração no facto de estar em casa, num pensamento mais voltado para dentro”, continua a designer. Entre leituras, redescobriu o conceito de fé — no divino, na ciência, até mesmo nas propriedades curativas do contacto humano. “O encontrar de um norte”, como resume.
A coleção nasceu daí e as referências mais literais saltam à vista: elementos da cartomancia, anjos, santos e escapulários estão presentes em estampados e bordados. As rendas concedem a algumas peças um toque clerical, ao passo que a paleta foi definida para se manter fiel aos quatro elementos da natureza: água, fogo, terra e ar. No vídeo, a coleção ganha vida com a música, a dança e a representação, sempre com o Porto como pano de fundo.
Uma dimensão poética do trabalho de Xiomara que convive com o pragmatismo assumido em contexto de crise. “Já há algum tempo que temos vindo a reduzir a quantidade de peças por uma questão de sustentabilidade. Com a pandemia então não faz mesmo sentido desenhar grades coleções porque as vendas estão a decorrer bastante a medo”, refere.
A designer continua a trabalhar na versatilidade do vestuário — peças multiformes e engenhosas que podem ser usadas de mais do que uma maneira e que também se adaptam facilmente a diferentes corpos. Outra das estratégias para contornar a retração do mercado tem sido “retrabalhar as peças assinatura da marca”. “O consumo está estagnado. Talvez a melhor forma de convencer o público a comprar seja apresentando peças que lhe digam alguma coisa”.
Estelita Mendonça: uma rave libertadora
Se há designer que vibra com o momento do desfile é Estelita Mendonça. A pandemia fê-lo renunciar ao desejo de percorrer a passerelle, embora tenha encontrado na música de Aqua Matrix e na videografia de Vasco Mendes um palco alternativo para contar a história da próxima estação fria, onde o desejo de liberdade assume a forma de uma rave dos anos 90. Escusado será dizer que nesta antevisão do futuro se dança, e muito.
“É uma coleção cápsula, inspirada no sonho do que nos apetecia fazer agora”, começa por explicar ao Observador. A partir das suas raízes no streetwear e no workwear, o designer criou flashes de cor e ainda apostou em materiais de de acabamentos metalizado e com aspeto de vinil. Numa altura em que tudo se complicou no acesso a fábricas e tecidos, Estelita recuperou uma velha fórmula, a reciclagem de tendas. “Faz parte da nossa identidade e é algo que queremos evidenciar ainda mais. Já que tudo é diferente, vamos fazer algo diferente”, assinala.
Fala num processo de “redescoberta da marca”, à boleia de um confinamento que ninguém desejou. Convidado a partilhar as conclusões, dá sinais de ter regressado às origens. “A ideia sempre foi trabalhar o vestuário masculino de forma completamente livre de todos preconceitos associados à forma de vestir. E conforto e sustentabilidade foram algo que sempre trabalhámos”, continua.
Das tendas faz casacos, da mesma forma que continua a reaproveitar stocks parados de tecidos para combater desperdício, uma missão que, chegado a 2021, passa também por reduzir o tamanho da coleção. “Há muitos anos que não faz sentido fazer coleções gigantescas. Numa marca pequena como a minha, e como 90% das marcas em Portugal, fazer peças que depois não são compradas nem produzidas é criar desperdício”, admite.
“Um compromisso entre o interessante e o vendável” orienta esta versão depurada e repensada da marca Estelita Mendonça, que quer retomar os desfiles convencionais mal seja possível. Reciclar e reaproveitar, dois dos verbos que continuam a aquecer indústria da moda, é a carta na manga (para não dizer o trunfo) para um futuro incerto. “Havia sempre receio por parte de quem comprava — as peças iam ser diferentes –, mas eles vão aprendendo. Hoje, o mercado está cada vez mais aberto”.
O primeiro dia da 47ª edição do Portugal Fashion contou ainda com a apresentação de Maria Carlos Baptista. A vencedora do concurso Bloom marcou presença no calendário de eventos da Semana da Moda de Paris, no início do mês. O mesmo vídeo foi agora recuperado em âmbito nacional. Esta sexta-feira, também ao início da noite, são esperadas as apresentações de Inês Torcato, Maria Gambina e Miguel Vieira.
Na fotogaleria, veja as coleções de Katty Xiomara e Estelita Mendonça.