A Polícia Judiciária está a investigar novamente dois casos de abuso sexual de menores apontados ao ex-padre madeirense Anastácio Alves há mais de quinze anos e que, à época, acabaram arquivadas por falta de indícios, numa altura em que o antigo sacerdote continua sob investigação devido a uma terceira denúncia de abusos surgida em 2018.

A informação foi partilhada com o Observador por uma fonte com conhecimento dos desenvolvimentos do processo, que ainda decorre na ilha da Madeira.

O caso do padre Anastácio Alves veio a público em setembro de 2018, quando o Diário de Notícias da Madeira noticiou que o então bispo do Funchal, António Carrilho, decidira afastar o sacerdote das funções que desempenhava numa paróquia de emigrantes portugueses em Paris, França, na sequência de uma suspeita de abuso sexual de menores. Na altura, o jornal madeirense lembrava que Anastácio Alves já fora constituído arguido em 2005 por suspeita de abuso sexual de menores, num processo que acabara arquivado.

Em fevereiro de 2019, no primeiro artigo de uma série de reportagens de investigação sobre os abusos sexuais de menores na Igreja em Portugal, o Observador revelou os detalhes dos dois casos em que Anastácio Alves havia sido implicado em 2005 e 2007, bem como os pormenores da nova denúncia que chegou à diocese do Funchal em 2018. Esses dois casos, arquivados por falta de indícios, estão agora novamente sob a mira das autoridades, uma vez que chegaram ao Ministério Público novos dados sobre aqueles casos.

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Padre foi denunciado duas vezes, mas só à terceira a Igreja agiu. Agora, desapareceu

A denúncia mais recente chegou através de uma carta anónima ao bispo do Funchal, António Carrilho, ainda durante a primeira metade de 2018, e dizia respeito a um crime alegadamente cometido durante o ano de 2017, durante umas férias que Anastácio Alves, a trabalhar em Paris, passara na ilha da Madeira. A vítima seria um rapaz de 12 anos, identificado depois de a escola que frequentava ter detetado comportamentos estranhos na criança e ter alertado a Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ).

O bispo optou por pedir pessoalmente ao padre Anastácio Alves que abandonasse as suas funções e instaurou-lhe uma investigação canónica para apurar os factos. O sacerdote acatou a ordem episcopal, despedindo-se da paróquia de Paris em junho de 2018, com uma carta pública em que não deu qualquer pista sobre os verdadeiros motivos do afastamento.

Todavia, a diocese não comunicou o caso às autoridades, argumentando estar a respeitar a vontade da família da vítima em não expor o caso. A situação só chegaria às autoridades através da CPCJ.

A investigação iniciada em 2018 fez ressurgir os dois casos em que Anastácio Alves já havia sido investigado por abuso sexual de menores, em 2005 e 2007, e em que a Igreja Católica tivera adotado uma postura diametralmente oposta, promovendo a transferência do sacerdote para outras geografias como modo de evitar o escândalo público em torno dos casos.

Dois casos acabaram arquivados

O primeiro caso foi aberto em junho de 2005, depois de um rapaz de 14 anos ter revelado ao pai que o padre Anastácio Alves havia abusado dele na sacristia da igreja paroquial de Nazaré, nos arredores do Funchal. O menor estudava no seminário do Funchal e, aos fins de semana, ajudava o padre Anastácio na igreja daquela paróquia, onde passava algum tempo com os avós.

Ao ouvir o relato do menor, o pai levou-o de imediato ao hospital — onde já não puderam ser feitas perícias por terem passado mais de 48 horas desde o alegado crime — e apresentou queixa no Ministério Público.

O caso sofreu um revés poucos dias depois, quando o menor se apresentou de novo na PJ, desta vez acompanhado por uma pessoa ligada à Igreja, para desmentir tudo o que dissera no depoimento inicial. A investigação ainda prosseguiria, com interrogatórios a testemunhas e ao próprio arguido, mas acabaria com o arquivamento do caso em 2007. No despacho de encerramento do inquérito, a procuradora ainda referiu as condições suspeitas em que o menor desmentira o depoimento, mas reconheceu que não havia provas suficientes para avançar com o caso.

Um dos aspetos mais paradigmáticos daquele primeiro processo é, contudo, a atuação da Igreja Católica. Em nenhum momento a diocese do Funchal (à época liderada pelo bispo D. Teodoro de Faria, o mesmo que chefiava a diocese na altura do célebre caso do padre Frederico) abriu uma investigação canónica ao caso. Pelo contrário, manteve o sacerdote sempre em funções. Quando se apercebeu de que o caso poderia redundar em escândalo público, o bispo transferiu o sacerdote para outra paróquia da região — a mudança coincide, no tempo, com a audição da primeira testemunha ligada à Igreja, um seminarista a quem a vítima havia confidenciado os abusos.

Poucos meses antes do arquivamento do primeiro processo, chegou às autoridades uma segunda denúncia, relativa a crimes alegadamente cometidos em 2006. A vítima, um rapaz de 10 anos, fora identificada por uma psicóloga, que comunicou as suspeitas à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens depois de contactar várias vezes com o menor no serviço de urgências do hospital, onde a criança surgiu com queixas de ansiedade.

No âmbito deste segundo caso, o sacerdote ainda chegou a ser alvo de vigilâncias por parte da PJ, mas o discurso confuso do menor levou a que os inspetores não conseguissem reconstituir nem provar o crime — embora tenham deixado, por escrito, a suspeita de que só uma relação perturbada com o sacerdote poderia causar aquele impacto na criança. Também o segundo caso acabaria arquivado, já em 2008.

Os dois processos não foram associados, apesar de se referirem ao mesmo arguido e ao mesmo tipo de crime.

Depois do arquivamento do segundo caso, o padre deixou a ilha da Madeira e foi colocado ao serviço de paróquias de emigrantes portugueses, primeiro na Suíça e depois em França. Só mesmo a terceira denúncia, já em 2018, levaria a Igreja a agir decisivamente contra o sacerdote.

Novos dados chegaram ao Ministério Público

Segundo uma fonte conhecedora do processo ouvida pelo Observador, já no decorrer da investigação atual motivada pela carta de 2018, um elemento da CPCJ reuniu novos dados, provas e indícios relacionados com os casos antigos e remeteu-os para o Ministério Público, para que os crimes que acabaram arquivados sejam reavaliados à luz das novas informações sobre a nova suspeita.

Não se trata, tecnicamente, de uma reabertura dos processos arquivados, mas antes de uma nova investigação que, através dos novos dados, poderá dar um novo destino aos casos que não avançaram, uma vez que se tratará de informações mais contundentes sobre os episódios que há mais de uma década acabaram arquivados por falta de provas. O caso de 2007 pode mesmo ter um desfecho diferente com responsabilização criminal, uma vez o Código Penal dita que o procedimento não se extinga enquanto a vítima não completar 23 anos de idade.

A investigação aberta em 2018 encontra-se em fase de inquérito, não tendo ainda sido proferida uma acusação formal por parte do Ministério Público.

O processo canónico, por seu turno, extinguiu-se em 2019, depois de Anastácio Alves ter pedido a dispensa do sacerdócio após vários meses turbulentos de uma investigação interna que não conseguiu avançar por falta de colaboração do próprio sacerdote.

Investigado por abuso sexual de menor, Anastácio Alves desapareceu. Agora enviou uma carta a pedir para deixar de ser padre

Com efeito, depois de ter sido afastado, no verão de 2018, o padre Anastácio Alves desapareceu do radar e a diocese tentou, sem sucesso, encontrá-lo para o interrogar no âmbito do processo canónico. Em março de 2019, um mês depois da publicação da reportagem do Observador, a diocese confirmou que mantinha a investigação sobre o sacerdote, mas sublinhou que “o paradeiro do padre Anastácio continua[va] a ser desconhecido”. Na altura, o novo bispo do Funchal, D. Nuno Brás, admitia mesmo prosseguir com o processo à revelia do sacerdote, caso ele não se apresentasse. No mês seguinte, à entrada de uma reunião em Fátima, D. Nuno Brás voltou a confirmar que continuava sem saber do padre, pelo que tinha decidido aguardar pela investigação da PJ.

O caso resolveu-se no final do ano, quando Anastácio Alves pediu para deixar de ser padre. O pedido ocorreu também de modo caricato: a diocese encontrou uma carta deixada em mão na caixa de correio, assinada pelo próprio Anastácio Alves, pedindo a dispensa das obrigações sacerdotais. O pedido foi encaminhado para o Papa Francisco, que depois formalizou a saída do madeirense do clero.

De acordo com uma fonte conhecedora do processo, Anastácio Alves terá passado por França e pela África do Sul durante o período em que esteve fora do radar da diocese. Durante esse tempo, o confronto com a família foi decisivo para a opção de abandonar o sacerdócio.

Já depois de o caso do padre Anastácio Alves ter vindo a público, a diocese do Funchal criou — à semelhança do que aconteceu no resto do país — uma Comissão de Acompanhamento de Crianças, Jovens e Pessoas Vulneráveis, composta por um padre, uma advogada e uma psicóloga, responsável por acolher e dar seguimento a denúncias de abusos no contexto da Igreja Católica, incluindo relativas a casos que tenham ocorrido no passado mais distante.