Músculos tensos, coração a bater depressa, respiração ofegante qb. A minha reação física a “Calls”, a série que já está disponível na Apple TV+, é o mais próximo que esta calona letárgica que vos escreve esteve este confinamento de fazer uma aula de cardiofitness. Ainda com a adrenalina e dopamina em bons níveis, arrisco dizer que é a melhor série de terror com ficção científica que já vi. Ah, pequeno detalhe: “Calls” é uma série de televisão, mas recorre somente a áudio. Dizer que “vi” é mera muleta de linguagem.

“Calls” é descrito como “uma experiência imersiva” e é o filho perfeito de duas das grandes tendências do momento: os podcasts e a “televisão Covid”, feita com os meios possíveis. Numa altura em que se nota, finalmente, o catálogo da Netflix a secar por tantos meses sem ter sido possível gravar, a Apple TV+ mostra-se pronta para esta guerra com uma ideia de que, de tão simples, podia correr o risco de ser desinteressante. São precisos meros minutos do primeiro de nove episódios (com durações entre os 13 e os 21 minutos) para perceber que não é.

Baseado num original francês criado por Timothée Hochet para o Canal Plus, a versão norte-americana foi entregue a um uruguaio: Fed Alvarez, um nome forte e emergente no género de terror, conhecido por “Evil Dead” e “Don’t Breathe”. O resultado é uma série tensa e compulsiva que, com grande mestria, desenrola um novelo de telefonemas aparentemente não relacionados para assim relatar um misterioso fenómeno que está a empurrar a humanidade para um evento apocalíptico. O grafismo é aparentemente simples, mas muito eficaz, ajudando simultaneamente a compreender os diálogos e a trazer mais voltagem para o resultado final.

[o trailer de “Calls”:]

Tudo começa pelo fim. Um telefonema entre dois namorados numa relação à distância à beira de falir depressa descamba para uma espécie de Dia do Juízo Final. Assim, o primeiro episódio chama-se “The End”, seguindo depois para “The Beginning”, um dos primeiros relatos de acontecimentos bizarros. Pelo meio, há de tudo: telefonemas entre casais, pais e filhos, operadores do 112 e criminosos, pilotos de avião e torres de comando. E se, como eu, detestam séries sem um final conclusivo, descansem: vão perceber exatamente o que se passou, como e com quem. A aura de mistério não serviu para que o guionista preguiçosamente se escusasse a explicar a sua premissa, como tanto se vê no género.

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Com um total de cerca de três horas, “Calls” é perfeitinho para binging, que é como quem diz “ver tudo de seguida só com pausas para xixi e ir buscar bolachas à despensa”. Porém, também é ideal para ver no telemóvel ou no tablet, ganhando muito ao nível do chamado cagaço quando escutado com headphones. É uma série verdadeiramente portátil, de um modo talvez nunca visto com tanta eficácia – mas, ao mesmo tempo, a experiência imersiva também lucra de um visionamento em ecrã de televisão, dominando toda a sala de estar. Terá é de, enquanto espectador, fazer a sua parte: “Calls” deve ser visto sem distrações, porque perde automaticamente a sua força. Esse grupo de WhatsApp de ex-colegas do secundário vai ter de esperar.

Também de notar o extraordinário trabalho de representação, aqui limitado à voz. A série tem um cast de luxo, provavelmente só possível pelas condições e circunstâncias tão especificas que atravessamos e que este formato tão bem sabe manipular. Nicholas Braun (“Sucession”), Lily Collins (“Emily In Paris”), Rosario Dawson (“Sin City”), Mark Duplass (“The Morning Show”), Nick Jonas (dos Jonas Brothers), Pedro Pascal (“Mandalorian”, “Guerra dos Tronos”) ou Aubrey Plaza (“Parks And Recreation”) são apenas alguns dos nomes. Na maioria dos casos, arrisco em dizer que não os vai reconhecer. É assim uma espécie de provas cegas do “The Voice” – o talento tem de chegar, porque tudo o resto é invisível.

Como se costuma dizer em rádio, aqui o importante é o “teatro da mente”, aquilo que tem de ser deixado ao reino da imaginação. Claro que essa imaginação é manipulada pelo formato, mas é isso que o bom terror faz desde sempre. É mais assustador pensar que a criatura de “Alien” pode aparecer a qualquer momento do que vê-la efetivamente a rasgar torsos; e o sucesso de “Blair Witch Project” veio exatamente de tudo o que não nos deixaram ver. “Calls” deva esse pressuposto mais longe, mostrando como o nosso próprio cérebro é por vezes o nosso maior inimigo. Caramba, como se os confinamentos não nos tivessem mostrado já.

Não deixa de ser irónico que uma plataforma como a Apple+, que gastou 150 milhões por temporada com o seu “The Morning Show” (a série com Jennifer Aniston, Reese Witherspoon e Steve Carell é uma das mais caras de sempre da história da televisão), aposte aqui num formato tão barato. Claro que é feito sem atalhos, com uma soberba atenção a todos os detalhes técnicos e não só, mas é um exemplo de uma boa ideia que não precisa de grandes meios. Suspeito que será dada como exemplo por muitos anos. Infelizmente, por diretores de programas menos visionários e mais forretas.

Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa