“Hoje vou ver o meu próprio desfile no sofá. É mesmo estranho”. O desabafo de Maria Gambina será certamente partilhado pela maioria dos criadores que acertou passo com as exigências desta nova realidade. Ao segundo dia de apresentações à distância, o Portugal Fashion abriu caminho para um dos nomes consagrados da moda nacional. Escura, dramática e a surgir por entre a neblina de um velho casarão, a coleção “Fagan” tem uma origem curiosa — o sofá, precisamente.
A criadora começa por descrever um contexto de crise social e económica, mas também de frustração, impotência e solidão. Nenhuma das semelhanças com a atual conjuntura é coincidência, mas refere-se aos conturbados finais da década de 70 em Londres, suavemente retratados no quinto episódio da última temporada de “The Crown”. Alerta spoiler: afligido por quase todos os males do seu tempo, Michael Fagan acaba por invadir o quarto de Isabel II, no Palácio de Buckingham.
“Não quis recriar o cenário ou a época, mas comparar aquilo ao que estamos a viver. Afinal, há elementos comuns a todas as crises. Vou fazer 30 anos de carreira para o ano e tenho a certeza que não consigo desenhar nada que não tenha um sentido. Trabalhei sempre sobre uma emoção”, justifica ao Observador, horas antes da transmissão do vídeo que, na noite da última sexta-feira, deu a conhecer as propostas da designer para o próximo inverno.
E é uma coleção indubitavelmente hibernal. O negro predomina, coisa rara na longa carreira de Gambina, agora mais do que nunca a acusar a exaustão do confinamento. “Não estou triste, nem a coleção é triste. É intensa, isso sim. Mas a solidão, a opressão, o cansaço e o não saber como vai ser o amanhã também não é coisa que traga muita luz”, admite. Um sobretudo oversized quebra o negrume com um verde azeitona emprestado pelas parkas da classe operária da época. Em detalhes bem menos percetíveis à distância, usou spikes metálicos numa breve piscadela de olho à cultura punk.
“Acho que me estou a tornar uma designer mais preocupada com os detalhes, na silhueta e na manipulação dos materiais. Já não me interessa mostrar que sou muito criativa e que consigo fazer coisas super diferentes. Todos os detalhes têm de ter um significado”, refere. As peças em malha são construídas às tiras, cortadas e unidas por coloretes, há flores cortadas a laser e sobrepostas, plissados e apontamentos gráficos em branco e vermelho.
Inquietude e saturação são usadas por Gambina para descrever o que lhe vai na alma, embora tenha dado um toque de delicadeza à fórmula do próximo inverno. Numa altura em que “tudo demora”, sente falta do tempo que dedicava aos pormenores, mas também da forma como, praticamente em simultâneo, desenhava a coleção e compunha o desfile nas paredes de casa. “A coleção transmite o que sinto neste momento: uma vontade enorme de mudar e de lutar contra determinadas coisas, mas não com gritos, zangas ou cartazes — de uma forma subtil, se calhar também mais madura”.
O verão de Inês Torcato e um novo capítulo para a marca
Em outubro do ano passado, Inês Torcato anunciou uma viragem na sua estratégia. As criações em nome individual continuariam, mas nasceria uma nova linha de pronto-a-vestir, mais comercial e com preços mais acessíveis. A promessa foi cumprida e, na última sexta-feira à noite, a designer levantou o pano que cobria a Torcato, etiqueta que se estreia com uma coleção para o verão de 2021, pensada para a venda online e direta através de um site que chegará dentro de semanas e que viverá de pequenos e sucessivos lançamentos até outubro.
“Tem muitos dos conceitos que tenho vindo a desenvolver nos últimos anos, mas aplicados a uma roupa que podes usar no dia-a-dia. A inclusão e a igualdade de género e de corpos continua ser o mais importante”, explica ao Observador. A linguagem da designer ganha, de facto, um tom mais quotidiano, mantendo peças de assinatura como o blaser de corte descontraído. A formalidade é ainda esbatida pelo peso que as gangas têm na coleção. “Os cortes das peças são pensados para servirem em vários tamanhos. É a parte mais importante deste projeto”, reitera.
A relação de Inês com as artes é quase tão umbilical como o leu laço com a moda. Juntar-se, por isso, a Gustavo Silva (realização) e Tiago Quelhas (texto) foi uma consequência natural, aprazível até, da impossibilidade de realizar um desfile. “É bom explorar outros formatos e a moda, como área capaz de incluir outras artes, foi o que me trouxe até aqui. E como estamos numa fase em que todos os setores da cultura estão a passar por grandes dificuldades, quis abordar isso também”, explica. A moda de Torcato volta a estar embrulhada num manifesto, “mais poético do que político”, mas sempre com uma mensagem que vai além da roupa.
O segundo dia da 47ª edição do Portugal Fashion terminou com a apresentação de Miguel Vieira. O desfile, gravado em Milão em janeiro e focado na coleção masculina, teve direito a nova transmissão, agora inserido no calendário nacional. A primeira leva de apresentações termina este sábado — a partir das 20h, estão previstas as coleções de Ernest W. Baker, David Catalán e Alexandra Moura, três nomes que passaram por Paris e Milão nos últimos meses.
Na fotogaleria, veja as coleções de Maria Gambina e Inês Torcato.