Passou meio século desde que abriu a primeira loja da Moviflor. Lisboa era outra. O país estava sob a governação de Marcelo Caetano, a Polícia de Segurança Pública abriu o primeiro concurso para a admissão de guardas do sexo feminino e Tonicha representava Portugal na Eurovisão. Lá fora, morria Coco Chanel, John Lennon lançava o álbum Imagine e o The New York Times publicava os Pentagon Papers.

Enquanto as grandes potências mundiais continuavam a mandar artefactos para o espaço, nascia no número 28 do Largo da Graça, em Lisboa, a loja que viria a dominar o mercado do mobiliário em Portugal. Da fundadora, Catarina Remígio, pouco se sabe — apenas que permaneceu na administração da empresa até outubro de 2014, altura em que as dívidas ditaram o encerramento das lojas e a desembocaram num processo de insolvência.

Para trás, ficaram décadas de expansão e prosperidade. Chegada aos anos 90, a Moviflor habituou os seus clientes a inaugurações, no mínimo, aparatosas. A lista de prémios em sorteio — quase sempre encabeçada por televisores e automóveis — resultava em filas. Bem mais recentemente, aquando a abertura de uma loja nas Caldas da Rainha, em 2010, os relatos deram conta de pessoas alinhadas à porta ainda no dia anterior.

Na televisão, as deixas e jingles ficavam no ouvido — os “3.000 contos em prémios” para distribuir pelos clientes da nova loja do Fundão, na voz de António Sala; os saldos anunciados pelo compadre Guilherme Leite; a abertura da grande loja do Porto, em 2001, com Esteves (personagem de Herman José) a prometer um descapotável ao melhor cliente; ou mesmo a campanha de março, ao som dos O-Zone.

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Centenas no desemprego e quase dois milhões desviados

A empresa chegou a empregar 1.400 pessoas, em cerca de 30 lojas espalhadas pelo continente e nas ilhas, e a atingir um volume de negócios superior 180 milhões milhões de euros, mesmo já depois da entrada da Ikea em Portugal, em 2004. “O problema da Moviflor não foi a concorrência, foi uma questão de sucessão. Os filhos [da fundadora] não deram a atenção necessária e cometeram erros. Chegaram a uma fase em que vendiam tanto que começaram a descapitalizar a marca, a assaltá-la”, admite José Manuel Reis, atual proprietário da Moviflor.

O alarme soou em 2013, altura em que um Plano Especial de Revitalização (PER) começou por prever a extinção de 320 postos de trabalho e o encerramento de cerca de uma dezenas de lojas, entre elas, a primeira de todas, no Largo da Graça. Só no ano seguinte, a empresa foi alvo de oito pedidos de insolvência por parte de funcionários, indício de que o PER estava prestes a fracassar. Em outubro desse mesmo ano, as lojas começaram a fechar portas. Em novembro, a Moviflor foi decretada insolvente. O número de trabalhadores estava então abaixo dos 550.

Fachada da antiga loja da Moviflor no Largo da Graça, em Lisboa © Mariana Vasques/Global Imagens

Mas o problema não ficaria resolvido. Em janeiro de 2015, mês em que a assembleia de credores (lista de mais de 100 páginas encabeçada pelo Fisco, pelo Banif e pela Segurança Social) somava 128 milhões de euros em dívidas, eram já 210 os processos contra a Moviflor na Autoridade para as Condições de Trabalho. Para agravar o cenário, o Ministério Público tinha aberto uma investigação, depois do administrador da insolvência ter denunciado “situações gravosas de dissipação de património”, como revelou o Público na altura. No total, os antigos donos terão desviado quase dois milhões de euros.

“Foi uma decisão estratégica e ocasional”, revela José Manuel Reis, ao justificar a aquisição feita em fevereiro de 2015, por cerca de 10 mil euros. “Havia uma estratégia de oferecer ao público uma solução de mobiliário. Na altura, estávamos com uma empresa sólida e aproveitámos a conjuntura de crise, ali entre 2008 e 2015, para ir participando em leilões”, conta.

A ida a Lisboa deu-se com o objetivo de arrematar a estantaria da histórica cadeia. Quando percebeu que a própria marca estava à venda, o empresário não pensou duas vezes. “Tive a sorte de não estar lá mais ninguém e pensei: nem é tarde, nem é cedo. A Moviflor tem uma taxa de reconhecimento acima dos 90%, é uma marca muito querida pelo público e toda a gente tem uma peça Moviflor em casa”, resume. Pela frente, o já então proprietário e fundador dos Armazéns Reis, cadeia dedicada aos materiais de construção e bricolage, tinha a árdua tarefa de reerguer a marca.

Sobre a antiga proprietária, nunca mais se ouviu falar, à exceção das notícias vagas sobre uma avultada burla de que terá sido alvo em Angola, em 2016. Foi por lá que se manteve como administradora da marca, que continua a ter página oficial. Segundo o site, a marca mantém uma loja física em Morro Bento, Luanda, inaugurada no final de 2015.

A nova vida da Moviflor

Em agosto de 2015, o empresário abria a primeira nova loja, menos de um ano depois da empresa insolvente ter encerrado todas as lojas. “Fiquei com uma Moviflor com problemas no mercado — a montante porque havia fornecedores a quem não tinham pago, e a jusante porque os clientes tinham pago produtos que nunca chegaram a receber. Chegaram a pensar que era um testa-de-ferro da antiga administração”, comenta o empresário do norte.

Mas foi precisamente pelos fornecedores da velha Moviflor que José Manuel Reis começou a reerguer o nome. Muitos dependiam exclusivamente da marca portuguesa e, por muito grande que fosse o rombo causado pela antiga administração, mostraram total interesse em retomar a parceria. Do lado dos clientes, a empresa assumiu “na íntegra” todos os créditos — “largas dezenas de milhares de euros”, como aponta — e comprometeu-se a descontá-los gradualmente em novas compras.

José Manuel Reis, o empresário que comprou a marca em 2015 por cerca de 10 mil euros © Divulgação

A primeira loja abriu em Oiã, no concelho de Oliveira do Bairro, em Aveiro. Seguiu-se Coimbra no ano seguinte, altura em que os planos da nova Moviflor começavam a crescer em ambição. “Em 2017, tínhamos tudo tratado para ir para Lisboa, mas vieram os fatídicos incêndios de outubro e perdermos o nosso centro logístico. Ficamos sem produto durante seis meses”, recorda.

A estrutura foi reconstruída do zero e adiou a expansão a cadeia para 2020. A oportunidade de voltar à capital, onde tudo começou há 50 anos, perdeu-se, mas em novembro o empresário cortou a fita da terceira loja, em Viseu, um investimento de 12 milhões de euros em ano de pandemia. A faturação: 17 milhões com a loja online a movimentar à volta de 18% do negócio, fatia que tende a aumentar em 2021. No total, a Moviflor emprega hoje cerca de 230 pessoas.

“Não tenho medo da concorrência”, reitera o CEO, ao mesmo tempo que admite que há outras cidades na calha. “Não há urgência em ir para a cidade a ou b. Não queremos estar como a Moviflor já esteve, com 20 e tal lojas e em cidades onde não faz sentido nenhum, mas pelo menos chegar às capitais de distrito”, refere. Porto, Lisboa e Algarve são as metas a cumprir, embora Santarém e um novo espaço em Coimbra façam parte dos planos. Com ou sem pandemia, a empresa prepara já uma nova abertura para 2022.