O processo começou com um anúncio inesperado do ministro da Ambiente, João Matos Fernandes, que surpreendeu a própria ministra da Agricultura e deixou a bancada socialista longe da unanimidade em relação à decisão. Joaquim Barreto, que foi presidente da comissão de Agricultura e Mar na anterior legislatura, foi uma das vozes que se levantou contra os planos do ministro do Ambiente. Esta quinta-feira — contra um parecer da ANMP, veterinários e uma resolução aprovada no Parlamento — o Conselho de Ministros aprovou a passagem da tutela dos animais de companhia para o ICNF. As mudanças nesta área faziam parte de promessas que o Governo devia ao PAN, após o partido animalista ter ajudado a viabilizar — por via da abstenção — o Orçamento do Estado para 2021.

Animais de companhia na tutela do ambiente? Ministra diz que está a ser trabalhado, mas nem o PS concorda

Antes da decisão, o Governo pediu um parecer à Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP) e a Assembleia da República aprovou mesmo um projeto de resolução do PCP que visava precisamente manter “as atuais atribuições e competências da Direção-Geral de Alimentação e Veterinária”. Em paralelo, criou o Provedor do Animal, e não teve que ser muito criativo para chegar ao conceito.

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A proposta número 660 do programa do PAN às legislativas de 2019 deixa poucas dúvidas sobre a paternidade do novo organismo agora aprovado em Conselho de Ministros: “Criar a figura do Provedor Nacional dos Animais”, podia ler-se. Mas, quatro pontos antes havia outro bem claro: “Retirar a proteção animal da tutela do Ministério da Agricultura”. Um dois em um conseguido pelo PAN, mesmo tendo o Governo contado com a oposição frontal a Associação Nacional de Municípios, dos Médicos Veterinários e da própria Assembleia da República.

A 28 de outubro do ano passado, já depois de ter sido anunciada a intenção de transferir a tutela dos animais de companhia para o ministério do Ambiente e de criar um Provedor do Animal a Assembleia da República aprovou um projeto de resolução do PCP para manter “as atuais atribuições e competências da Direção-Geral de Alimentação e Veterinária”.

Na votação, Ascenso Simões (do PS), BE, CDS-PP, PEV e IL mostraram-se a favor da iniciativa comunista, Joaquim Barreto, ex-presidente da Comissão de Agricultura e Mar foi um dos dois deputados do Partido Socialista a abster-se (juntamente com Francisco Rocha) tal como o Chega e as duas deputadas não inscritas. Contra apenas os restantes deputados socialistas e o PAN, que já tinha garantias que duas das aspirações programáticas seriam satisfeitas.

Já o parecer da Associação Nacional de Municípios, a que o Observador teve acesso, é bem claro logo no primeiro ponto. Considera a ANMP que o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) não tem “experiência no domínio da política do bem-estar animal, em particular no domínio dos animais de companhia“.

O facto de não se conhecerem “os contornos associados à restruturação do ICNF e de que forma […] pode assumir, precipitadamente, competências em matérias complexas e tão diversas do seu campo de atuação habitual” também motivou reservas na associação de municípios que optou por deixar expresso no parecer a preocupação com “aspetos que vão desde a saúde pública à segurança de pessoas e bens”. Fundamentava a ANMP que estas deviam ficar com as “entidades que detêm o conhecimento técnico e científico e a experiência acumulada nestes domínios”.

O afastamento da Direção Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) que tem por missão, para além da experiência, a definição, execução e avaliação da política de proteção animal e de sanidade animal e que está investida nas funções de autoridade sanitária veterinária (inclusivamente a nível internacional), prefigura-se assim como preocupante e causador de entropias na mudança de paradigma que o Governo se propõe concretizar, sobretudo quando está em causa um calendário tão apertado como o proposto”, frisavam no parecer que, ainda assim, foi ignorado pelo Governo.

Veterinários falam em “erro histórico” e decisão “é unicamente política” e “absurda”

Ao Observador, o Bastonário da Ordem dos Médicos Veterinários Jorge Cid classifica a decisão do Governo como “um erro histórico” e acusa o Executivo de ter “ignorado completamente os pareceres dos técnicos”. “São matérias demasiado graves para serem tomadas estas decisões sem base técnica, sem nenhum estudo técnico para as tomarem. Não vi nenhum estudo técnico, é unicamente uma decisão política, não tem nada a ver com científico”, apontou frisando que esta alteração de tutela do bem-estar dos animais de companhia interfere não apenas com a saúde animal, mas também com a saúde pública.

“Consideramos um erro grave, diria histórico, afastar a DGAV deste processo sendo esta uma instituição centária que tem um departamento de bem-estar animal e que devia ter sido, isso sim, reforçada de meios humanos e financeiros e não passar uma parte do bem-estar animal para outro ministério”, afirmou Jorge Cid que nota que a opção do Executivo “vai contra todas as orientações técnicas, nomeadamente da OIE — Organização Mundial de Saúde para Animais —, a Federação dos Veterinários da Europa, da Ordem dos Médicos Veterinários e de 40 associações do setor”.

Já Ricardo Lobo presidente da Associação Nacional de Médicos Veterinários dos Municípios (ANVETEM) aponta critérios “nada transparentes” que pautaram todo o processo que considera ter desaguado numa decisão “absurda e inaceitável”.

“É absurdo que separem as competências de bem-estar animal. Haverá dois organismos diferentes de ministérios diferentes a tutelar o bem-estar animal, o que vai criar muita dificuldade. A questão dos animais errantes, por exemplo, que é do bem-estar dos animais de companhia, mas também é uma questão que levanta preocupações, acima de tudo é uma questão de saúde pública e segurança das populações”, aponta o responsável que frisa ainda a falta de “tradição e conhecimento do ICNF” para assumir a pasta.