Patricia Highsmith, escritora norte-americana que morreu em 1995, é até hoje considerada uma referência obrigatória na arte do thriller criminal psicológicos. Em 1966, publicou Plotting and Writing Suspense Fiction, livro agora publicado pela Cavalo de Ferro com tradução de Rita Canas Mendes, com o título “Suspense ou a Arte da Ficção”.
Neste livro, partindo da sua experiência de escrita, parece querer dar pistas para a escrita alheia, ainda que assuma que não há um manual para a criação literária. À partida, as dicas que dá são o padrão habitual dos livros sobre este ofício: juntar ideias, desenvolver um enredo, fortalecê-lo, encontrar pormenores que justifiquem ações posteriores, pôr tudo em causa, deixar o texto de molho, olhar mais tarde para ele com olhos descansados.
Ainda assim, encontramos alguns pontos de interesse, como a ideia de que a possibilidade de fracasso é omnipresente durante o exercício da escrita. Isto anula qualquer pretensão de que o empreendimento de concretização de um romance é uma tarefa fácil e a direito. Tudo é resultado de trabalho, cada parágrafo é uma decisão tomada, e a ideia da musa inspiradora resulta na poesia, mas não na vida real. Referindo-se ao resultado desse trabalho, a autora, que insiste que a primeira lição é a individualidade – uma literatura que é cópia é inútil –, enfrenta ainda as particularidades da arte do suspense, em que se especializou. Por exemplo, Highsmith nota que os autores de suspense tendem a lidar mais com problemas concretos – a letalidade de soporíferos – do que abstratos – um dilema moral – do que os “romancistas convencionais”, como chama aos outros.
No caso do suspense, a possibilidade de ação violenta ou de morte está sempre à espreita, e será isso a aguentá-lo. E, partindo da ideia de que os leitores querem entretenimento, o suspense permite-lhes – obriga-os a – ficarem presos numa história.
Entre uma ideia para um livro e um público agradado vai um caminho longo, e o seu fim depende de decisões que sustentem o fio condutor, de um enredo bem delineado, de ações ao serviço de um efeito, de pormenores que afirmem a credibilidade. E até se poder dar corpo a um livro é preciso que uma ideia ganhe força – e que possa enfim sustentar-se até ao fim. Highsmith encara este desenvolvimento como “um processo emocional, uma sensação de completude emocional” (p. 26). É a partir daí que o autor se ata ao texto e que o texto se permite.
Para isso, as experiências que estiverem ao alcance do escritor devem estar ao seu serviço. “Golpes emocionais” (p. 33), chama-lhes Highsmith. A estratégia passará, no seu entender, pela necessidade de eliminar os “escudos finos” (p. 35) dos autores, já que são os sofrimentos e as impressões o que constitui a matéria-prima do seu trabalho. Assim, a consciência da vida é o ideal dos artistas e o ofício da escrita é apresentado como sinónimo de um perene desenvolvimento de uma ideia.
Highsmith advoga que criar coisas permite romper com o tédio, dar o golpe à rotina. Para isso, talvez o tédio seja a condição ideal para se poder mergulhar numa proposta ficcional. Produzir ficção é um jogo, e jogá-lo deve implicar entretenimento, entrar no texto e tê-lo vivo, estando desligado do que está à volta. Ou não estando, pelo menos, condicionado por ele de imediato.
Aqui, será fulcral planear as ramificações depois de desenvolvida a ideia. Ou seja, esboçar a ação e parte do enredo, como o lugar do clímax, se o houver. Através do suspense, deve levar-se a credulidade do leitor ao limite, sem a quebrar. Optar pela surpresa permanente deve ser evitado, assim como suspender a lógica.
Partindo destas dicas, Highsmith dá exemplos concretos da sua obra, num livro que poderá estar pejado de spoilers para quem não conhecer os romances lá mencionados. Defende sempre o mesmo tríptico: o enredo à prova de balas, um ritmo propulsor, o envolvimento com as personagens.
De resto, a autora vai a pormenores de escrita, defendendo, por exemplo, o início do texto como mergulho na ação. Ou seja, diz que a primeira frase deve apresentar uma coisa em movimento, sem que fiquem explícitas as razões do movimento. Essa ausência não fará mossa porque o movimento se imprime na memória como ação. Depois, caberá ao leitor fazer com que este seja operante nas ações posteriores. A partir daí, convém garantir a promessa de ação – e cumpri-la. Os diálogos devem ser usados com parcimónia para terem mais impacto e as descrições devem ser q.b., nunca extenuantes, operantes para salientar incongruências de cenário, se as houver.
Sobre formas de estruturar a sintaxe de uma obra, a autora considera que, formalmente, é mais difícil usar na escrita a primeira pessoa do singular. Chega inclusive a descrever uma situação em que fica cansada de escrever o pronome “eu”. Esta consideração soará estranha aos falantes do português, com quem se passa ao contrário. Na medida em que as formas verbais não precisam de explicitar o sujeito – o verbo conjugado já o explicita –, a primeira pessoa soa sempre a saída mais fácil. A terceira, por sua vez, obriga a mais repetições, seja dos pronomes ou dos substantivos próprios.
Finalmente, sobrevive a ideia de que a prosa nunca deve ser vista como sagrada e que o autor deve ser implacável a cortar ervas daninhas. As dicas que Highsmith nos deixa podem ser interpretadas como a chave do seu sucesso na arte da escrita de suspense.