É para quem não consegue ou não pretende deixar de fumar que a indústria tem procurado inovar e desenvolver alternativas cada vez mais tecnológicas e com menos riscos para a saúde. Para os fumadores inveterados ou para os que procuram uma alternativa de transição para abandonar os cigarros, há opções cada vez mais sofisticadas. Além dos medicamentos de cessação tabágica, à base de nicotina, e dos cigarros eletrónicos, com ou sem nicotina, existem agora dispositivos de tabaco aquecido sem combustão. A luta contra o tabagismo continua a ser o objetivo, mas, entretanto, o consumo de tabaco reinventa-se e procura minimizar os danos.

O número de fumadores tem vindo a descer nos últimos anos, mas em todo o mundo, ainda são fumados 15 mil milhões de cigarros por dia. Até 2025, a OMS quer reduzir em 30% o número atual de fumadores, que se cifra atualmente em cerca de 1250 milhões. A razão é simples: segundo esta organização, oito milhões de pessoas morrem todos os anos devido a doenças relacionadas com o tabaco, um vício responsável por 90% de todos os cancros do pulmão, 75% das bronquites crónicas e enfisema pulmonar e 25% das doenças isquémicas cardíacas. Basta fumar um cigarro todos os dias para aumentar o risco de um ataque cardíaco em 50%. A grosso modo, cada cigarro fumado tira-nos sete minutos de vida. Não são boas notícias, mas também estão longe de ser novidade.

Infografia: Hugo Araújo (HAGA)

Há décadas que estes números são conhecidos, tal como os mecanismos da adição e as consequências dos componentes mais tóxicos dos cigarros. Sabemos hoje que, se a nicotina é a grande responsável pela vertente aditiva do tabaco, o fumo é o verdadeiro causador dos seus malefícios. Estimam-se em mais de 4 mil o número de compostos químicos nele presentes e pelo menos 60 são potencialmente causadores de cancro. “Além da acetona, o fumo de tabaco contém monóxido de carbono (presente nos gases de exaustão dos automóveis), DDT (inseticida), metanol (combustível), tolueno (solvente industrial), naftaleno (presente nas “bolas de naftalina”), cádmio (constituinte das baterias dos automóveis), butano (combustível dos isqueiros)”, pode ler-se no site da Direção Geral da Saúde (DGS). É este fator que também explica que cerca de 600 mil das mortes causadas pelo tabaco sejam de fumadores passivos, isto é, não fumadores que são expostos ao fumo do tabaco. E é também o que faz com que a indústria tenha passado os últimos anos em busca de alternativas sem combustão, sem fumo, sem alcatrão, e com nicotina para garantir que o fumador de cigarros considere estas alternativas satisfatórias e mude completamente os seus hábitos de consumo.

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Cobiçado, ostentado, amado e finalmente… odiado

Além do efeito aditivo da nicotina, o facto dos malefícios do tabaco serem diferidos no tempo é uma das explicações para a falta de motivação em deixar de fumar. Podemos culpar os exploradores espanhóis que trouxeram o tabaco dos Andes no século XVI. Ou o embaixador francês em Portugal Jean Nicot (de onde vem o termo nicotina) que o amou e divulgou como terapêutico para as enxaquecas. Certo é que rapidamente o tabaco passou de moeda de troca para compra de escravos em África a símbolo de ostentação, primeiro sob a forma de charuto e depois como o mais popular cigarro.

Mesmo nesta altura, já havia quem desconfiasse dele. Ao longo da história, houve inúmeras iniciativas determinadas a pôr-lhe fim, nomeadamente vindas da igreja ou de estados totalitários como a Alemanha nazi. Mas o conhecimento científico dos seus efeitos nefastos para saúde surge só depois dos anos 60, já o tabaco se tinha instalado no imaginário coletivo como sinónimo de status, colado às imagens sedutoras de Humphrey Bogart, James Dean, Marlboro Man ou Lucky Luke (que deixou de fumar em 1983). O primeiro estudo a sugerir uma correlação com o cancro do pulmão data de 1952, da autoria do médico britânico Richard Doll. Sete anos depois, em 1959, Portugal avançava com a proibição de fumar em recintos fechados onde se realizassem espetáculos, mas o hábito ainda continuou a fazer parte dos gestos diários de toda uma geração habituada a fumar em casa e no local de trabalho. Só após a acumulação de mais evidências científicas, em 2006, é que a OMS criou a Convenção Quadro para Controlo do Tabaco, com o intuito de coordenar medidas de restrição globais, o que conduziria a um dos momentos mais marcantes da história antitabágica em Portugal: a lei de 2007, que implementou a proibição de fumar em todos os espaços públicos fechados, revolucionando hábitos praticados há décadas.

Quem é o fumador português?

Em Portugal, o cenário não difere do resto do mundo: estima-se que, a cada 50 minutos, morre uma pessoa de causas relacionadas com o tabaco. Em 2019, o Inquérito Nacional de Saúde contabilizava 1 milhão e 700 mil fumadores no território nacional, cerca de 17% da população. E mais: apenas 15% dos que fumam consegue deixar de fumar. Dos que fumam, em 2020, 66% diz que nunca tentou deixar de fumar, e apenas 34% já o tentaram fazer segundo os dados mais recentes do Eurobarómetro.

Infografia: Hugo Araújo (HAGA)

Sabe-se que “a cessação tabágica é frequentemente um processo difícil e sujeito a múltiplas recaídas”, lê-se no site da DGS. As consultas de apoio intensivo à cessação tabágica disponibilizadas em centros de saúde e hospitais são a face mais visível das políticas públicas de combate ao tabagismo e têm vindo a aumentar (houve 31.800 em 2017, mais 3,5% do que em 2015), juntamente com a utilização dos medicamentos antitabágicos — que voltaram a ser comparticipados em 2017, um investimento de cerca de um milhão de euros que fez duplicar o consumo destes fármacos. Ainda assim, segundo a DGS, quase metade dos fumadores portugueses nunca fez qualquer tentativa para parar de fumar.

Substitutos do tabaco: melhor do que continuar a fumar

É para quem quer continuar a fumar que os novos formatos de cigarro podem fazer a diferença, salientam os responsáveis da indústria. Faz sentido oferecer alternativas com menos riscos se a tecnologia assim o permitir e se estes produtos forem acessíveis, e substanciados por evidência científica. Não sendo inócuos, são menos maus, argumentam.

Nos EUA, a Agência Americana para a Segurança Alimentar e para o Medicamento (FDA), autorizou, em 2019, a comercialização de um dispositivo de tabaco aquecido (o IQOS da Philip Morris International, de que a Tabaqueira é subsidiária), e mais tarde, em Julho de 2020, pronunciou-se novamente agora com uma autorização de comercialização de  “Produto de Tabaco de Risco Modificado”, com informação sobre redução de exposição, assumindo como credíveis os estudos científicos que demonstram que estes novos produtos de tabaco aquecem o tabaco, mas não o queimam (não têm combustão, nem produzem fumo e alcatrão), e tal reduz significativamente a produção de constituintes químicos nocivos e potencialmente nocivos, e que esses mesmos estudos demonstram que a substituição completa dos cigarros convencionais pelo tabaco aquecido reduz significativamente a exposição do organismo a esses mesmos constituintes. Em suma, estes novos produtos são significativamente diferentes dos cigarros convencionais, e embora não isentos de risco são uma escolha menos má do que fumar tabaco convencional.

O Reino Unido já contempla a possibilidade de usar estes dispositivos alternativos nas consultas de cessação tabágica do sistema nacional de saúde, mas as autoridades de saúde europeias, assim como a OMS, exigem mais estudos independentes antes de dar passos semelhantes. Em Portugal, a DGS também não recomenda estes aparelhos. A alteração à lei do tabaco de 2017 fez inclusivamente equivaler os novos dispositivos ao tabaco, passando estes a estar sujeitos às mesmas limitações de consumo em espaços públicos, por exemplo, apesar de não emitirem fumo passivo prejudicial a terceiros.

Mesmo com estes contratempos, o entusiasmo da indústria com a revolução que a tecnologia e a investigação científica podem trazer a este mercado é evidente. De tal forma que o presidente executivo da PMI admitiu, numa entrevista à BBC, em novembro de 2019, que a empresa poderia deixar de fabricar os cigarros convencionais em 2025, à medida que os fumadores forem transitando para estas novas formas de fumar.

Em declarações ao jornal Público, em abril de 2019, o Subdiretor-geral do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências, Manuel Cardoso, vaticinava também que “mais dia, menos dia”, as autoridades de saúde terão que “tomar uma decisão” quanto à inclusão das novas formas de ingestão de nicotina nas políticas de redução de danos associadas ao consumo de substâncias.

As alternativas ao tabaco

Os medicamentos de primeira linha usados nas consultas de cessação tabágica são a nicotina, a vareniclina e o bupropiom, em tratamentos que duram, tipicamente, oito a 12 semanas. A nicotina continua a ser o mais popular, com fórmulas de administração por via oral (pastilhas e comprimidos de chupar, gomas de mascar, películas orodispersíveis), ou por via transdérmica (adesivos), em diferentes dosagens. De preço livre e não sujeita a receita médica, teve um total de 69 mil embalagens comercializadas em 2018, segundo o Infarmed.

No que toca a alternativas aos cigarros convencionais, a primeira a surgir foi o cigarro eletrónico, dispositivo que usa uma bateria e dispensa nicotina líquida, ou outros líquidos, que são aquecidos e vaporizados, permitindo a inalação. O principal componente dos e-líquidos é propilenoglicol ou glicerina, além das fragrâncias que lhes podem conferir sabores característicos, tão variáveis como menta, chocolate, tabaco ou fruta. Porque produzem vapor e não fumo, os utilizadores intitulam-se “vapers” e não fumadores. Por não conterem tabaco nem estarem sujeitos às temperaturas muito elevadas da combustão (cerca de 800º), não têm os efeitos adversos associados ao fumo dos cigarros, mas os aromas que neles são introduzidos também podem formar substâncias potencialmente tóxicas ao serem aquecidos a cerca 350º, como acetaldeído, formaldeído, acroleína e outros carbonilos, pelo que não são inócuos, alerta a Sociedade Portuguesa de Pneumologia.

O facto de serem particularmente atrativos para os mais jovens, devido ao visual moderno e tecnológico que podem ter, é outra fonte de preocupação para os decisores políticos. Por exemplo, o JUUL, criado por dois empreendedores de Silicon Valley, conquistou rapidamente 70% do mercado americano. Um episódio recente sobre venda de líquidos falsificados para usar nestes dispositivos também foi associado a inúmeras mortes por doenças respiratórias graves em 2019, levando inclusivamente o governo norte-americano a ponderar proibir totalmente a comercialização de cigarros eletrónicos com sabores.

Mais recentes no mercado são os dispositivos de tabaco aquecido que prometem menos toxicidade devido ao facto de passarem ao lado da combustão (como os cigarros eletrónicos), mas também por conseguirem libertar a nicotina a temperaturas mais baixas e de forma mais controlada do que aqueles (cerca de 300º). Nos EUA, a avaliação dos estudos científicos disponíveis feita pela FDA concluiu que, neste dispositivo, a exposição ao monóxido de carbono do aerossol é comparável à exposição ambiente e que os níveis de acroleína e formaldeído são 89% a 95% e 66% a 91%, respetivamente, ou seja, menores que os dos cigarros combustíveis.

Diferentemente dos cigarros eletrónicos, os dispositivos de tabaco aquecido não funcionam com líquidos ou nicotina, mas sim com unidades de tabaco real que é aquecido de forma uniforme, proporcionando um sabor semelhante ao de um cigarro, mas sem os malefícios da combustão. Parecido com um pequeno telemóvel, funciona pela introdução de heatsticks com filtro e tabaco. Atualmente, mais de 30 organismos e entidades científicas independentes – incluindo o Comité Americano Científico Consultivo para Produtos de Tabaco da Agência para a Alimentação e o Medicamento (FDA), o Instituto Alemão de Avaliação do Risco, o Instituto Holandês para a Saúde Pública e Ambiente e o Comité Oficial de Toxicidade do Reino Unido, que aconselha a Direção-geral de Saúde local, já admitiram que, não sendo inócuo, o aerossol resultante do aquecimento do tabaco apresenta uma significativa redução da exposição aos constituintes nocivos e potencialmente nocivos presentes no fumo dos cigarros.

Portugal foi um dos primeiros países a disponibilizar o IQOS, produzido pela PMI, de que a Tabaqueira é subsidiária, e o diretor da fábrica portuguesa, Marcelo Nico, já assumiu a vontade de vir a ter mais investimento dedicado a estes novos produtos. Outras tabaqueiras também estão a investir na área, como a British American Tobacco, com o Glo e o Glo Ifuse, ou a Japan Tobacco com o Ploom e o PAX.

Conferência debate a proteção dos consumidores

Redução de danos é um conceito chave que os defensores dos métodos alternativos ao tabaco querem ver mais debatido em nome da saúde dos consumidores. Na Terceira Conferência Científica Políticas de Redução de Danos do Tabaco, que teve lugar a 24 e 25 de setembro de 2020, online, foram difundidos alguns dos argumentos mais contundentes por parte de cientistas e experts convictos dos benefícios que a integração ou pelo menos o apoio por parte de governos e entidades de saúde poderia fazer pela população. O conceito de redução de danos vê como benéfica a recomendação de produtos alternativos ao cigarro, como cigarros eletrónicos (sem nicotina) ou tabaco aquecido, assumindo que, não sendo inócuos, são menos prejudiciais para a saúde, o que é validado por inúmeros estudos, podendo ser úteis para fumadores inveterados que não conseguiram deixar de fumar por meios convencionais ou simplesmente não o querem fazer.

“Novas tecnologias estão a emergir e a possibilidade de reduzir riscos deve ser explorada e apoiada pelos decisores políticos”, afirmou, por exemplo, o pneumologista grego Michael Toumbis, um dos 49 oradores do evento. “É crucial ajudar as pessoas a fazerem escolhas mais racionais e informadas. A realidade é que muitas ainda pensam que a nicotina é o fator mais prejudicial do tabaco e causador de cancro, quando os cancros ocorrem devido aos componentes tóxicos originados pela combustão do tabaco”, lembrou também o ex-consultor de Tony Blair na área da saúde pública e sustentabilidade, Clive Bates, defendendo não ser verdade que estes produtos normalizem o ato de fumar: “Pelo contrário, normalizam o parar de fumar através de meios alternativos, trata-se de verdadeira tecnologia anti-tabágica”, apontou.