As fotografias que Vivian Maier tirou ao longo de décadas são tão misteriosas quanto a sua própria vida. O seu nome não aparece nos livros (ou não aparecia até há cerca de 15 anos) e o corpo de trabalho que deixou nunca tinha sido incluído na história da arte. E, no entanto, é agora considerada um dos maiores nomes da fotografia do século XX, com imagens maioritariamente a preto e branco que documentam um certo quotidiano da América — cruzamento entre street photography (fotografia de rua) e documentalismo francês.

A enigmática Vivian Maier nasceu em Nova Iorque em 1926, trabalhou como ama em casas de famílias abastadas de Chicago e quase ninguém sabia que era fotógrafa. Sozinha e sem família, vem a morrer num lar em 2009, aos 83 anos. Mas já desde 2007 que o seu nome começava a tornar-se lendário.

É por isso com redobrado interesse que se espera a abertura em Cascais da retrospetiva Vivian Maier: Street Photography, que pode ser vista a partir de terça-feira, dia 6, no Centro Cultural de Cascais. A organização é da Fundação D. Luís I e da Câmara de Cascais, no âmbito da programação “Bairro dos Museus”. Fica até 18 de maio, Dia Internacional dos Museus.

São 135 trabalhos — fotografias e filmes em formato Super 8 — que nos mostram os subúrbios dos EUA ao longo de quase toda a segunda metade do século XX. A curadoria é de Anne Morin e da diChroma Photography, produtora madrilena de projetos culturais. Desde 2013 a mostra já passou por várias cidades espanholas, também por Roma, Berlim, Taiwan, etc. A abertura em Cascais esteve anunciada para 16 de janeiro, mas foi adiada perante o início do segundo confinamento.

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Conta-se que em 2007 o jovem John Maloof, descrito em algumas notícias como agente imobiliário, comprou num leilão em Chicago, por apenas 380 dólares (menos de 300 euros), cerca de 100 mil negativos de Vivian Maier, bem como diapositivos, fotos, vídeos amadores e gravações de áudio — e muitos papéis, incluindo receitas, correspondência e livros.

Ela não teria tido dinheiro para pagar a renda de casa, pelo que os pertences acabaram em hasta pública, e John Maloof não saberia o que estava a comprar, pois presumivelmente andava apenas à procura de fotos para um livro sobre Chicago — ele e o coautor, Jeff Goldstein. Interessou-se pelos negativos, começou a digitalizá-los e a partilhar as imagens na internet. De repente, Vivian Maier saiu da penumbra. Livros, exposições, conferências e até um documentário: À Procura de Vivian Maier (2013), de Maloof e Charlei Siskel, com estreia portuguesa em 2018.

[excertos do documentário À Procura de Vivian Maier]

“Caso de genialidade, sim, mas tinha uma enorme cultura visual”

As obras que os portugueses agora podem ver pela primeira vez vão de princípios dos anos 50 até meados da década de 80, o que corresponde à época mais emblemática da trajetória da artista, e articulam as grandes temáticas que Vivian Maier abraçou. Desde logo, o autorretrato, considerado um capítulo fundamental.

“Ela foi uma personagem invisível para a sociedade e provavelmente por isso teve necessidade de se fotografar, para dizer a si mesma que existia”, comenta a curadora, ao telefone com o Observador a partir de Madrid.

Depois há os retratos que fez nos bairros pobres de Nova Iorque e Chicago. “São retratos de pessoas como ela, gente abandonada e sem identidade, que não pertence ao ‘sonho americano’, que está na periferia do mundo”, comenta Anne Morin.

Outro núcleo da exposição leva-nos a conhecer a vida nas ruas dos bairros operários da América, “o teatro onde a vida acontece”, nas palavras da curadora. “São imagens de uma dimensão humanista, com uma atenção ao outro, na linha dos fotógrafos franceses do pós-guerra. Eles acreditavam que um mundo novo poderia surgir através das suas imagens”, analisa Anne Morin.

É por isso que a curadora coloca Vivian Maier, ao nível da linguagem artística, no cruzamento entre a street photography americana (Robert Frank ou Diane Arbus) e a fotografia humanista francesa (de Robert Doisneau ou Cartier-Bresson). Este aspeto assume grande relevância, segundo Anne Morin (nascida em França em 1973, formada pela École Nationale de Photographie d’Arles e pela École Supérieure des Beaux-Arts de Montpellier, com passagem pelo festival PhotoEspaña entre 2001 e 2004).

“Viviam Maier era francesa da parte da mãe e austríaca da parte do pai. Conhecia muito bem a cultura francesa e isso nota-se nas imagens que fez, apesar de não ter tido educação formal como fotógrafa. Era totalmente autodidata e a única coisa que se pode supor, embora sem certezas, é que estaria familiarizada com a cultura visual, sobretudo a francesa, até porque conheceu bem a artista e fotógrafa Jeanne Bertrand”, explica a curadora.

Será caso para falarmos em genialidade? “Era um caso de genialidade, sim, mas tinha uma enorme cultura visual, incluindo cinema, teatro, revistas, jornais, livros, exposições”, acrescenta. “Era uma pessoa muito culta. Estive em Chicago e pude ver no espólio dela livros de Cecil Beaton, de Thomas Struth, uma enciclopédia sobre história da fotografia. Ou seja, era alguém que sabia fotografar porque também estudava sobre o assunto.”

O espólio a que se refere está hoje na posse de John Maloof (as fotos e filmes do leilão) e também na Universidade de Chicago, por doação de Maloof. Ele terá 100 mil fotografias objetos de Vivian Maier e é desse acervo que saem as obras que estarão em Cascais. Pelo menos outros dois colecionadores, Ron Slattery e Randy Prow, são donos dos restantes 20 mil negativos conhecidos da artista, mas não têm explorado a circulação e divulgação pública.

8 fotos

“Não estamos a criar uma Vivian Maier que não existiu”

Vivian Dorothy Maier nasceu em 1926. Os pais separaram-se pouco depois e ela foi viver com a mãe e Jeanne Bertrand para a zona do Bronx, até 1938. Enviada para França na companhia da avó, é ali que começa a fotografar, em fins dos anos 40, até se radicar novamente nos EUA (Chicago, quase sempre). Fotografava com as míticas máquinas Rolleiflex, primeiro, e Leica, depois, e em 1965 comprou uma Bolex para filmar em Super 8.

“Os filmes dela têm um aspeto fascinante”, diz a curadora. “Grava cenas de rua, as flutuações, a agitação das pessoas que vão e vêm, mas no fundo filma como quem está a olhar, é como se estivéssemos a ver através dos seus olhos curiosos. Muitas vezes, nota-se que pára a filmagem quando encontra alguma coisa que lhe interessa fotografar.”

Não se conhecendo qualquer anotação da própria artista sobre o sentido e propósito das obras, as interpretações disponíveis são as de especialistas com olhar treinado. Mas mesmo estas estão ainda baseadas nas incertezas que rodeiam a artista. Porque é que ela fotografava e escondia? Porque é que, aparentemente, nunca quis publicar as suas fotografias?

“Estou convicta de que procurava relacionar-se com o mundo através da fotografia”, responde Anne Morin. “Era tão fechada sobre si mesma que o único vínculo com o mundo era a fotografia. Através desta linguagem, criou e afirmou a sua própria identidade, fazia-o por si mesma e isso bastava-lhe, razão pela qual nunca procurou mostrar as imagens a outras pessoas.”

Sendo assim, cabe também perguntar se as exposições, os livros e o documentário estão a fazer com o trabalho de Vivian Maier o que ela nunca quis em vida. A curadora entende que não. “Se ela tivesse querido bloquear qualquer divulgação das fotografias, podia tê-las deitado fora e não teria guardado os negativos”, justifica. “Deixou a porta aberta para que o reconhecimento público aparecesse. Pela nossa parte, estamos a tratar este legado com enorme respeito. Não estamos a criar uma Vivian Maier que não existiu, até porque muitas das fotos que mostramos agora foram impressas pela própria, ou seja, resultam de uma seleção que ela mesma fez. Estamos a oferecer um olhar sobre um arquivo que foi abandonado.”