Portugal foi o primeiro membro da União Europeia a aderir à Convenção de Istambul, mas ainda “falta o essencial” para que este tratado sobre violência contra mulheres seja efetivamente implementado, analisa a juíza-conselheira Teresa Féria.

Contactada a propósito do décimo aniversário daquele que é considerado o primeiro tratado global sobre violência contra mulheres, Teresa Féria, juíza-conselheira no Supremo Tribunal de Justiça, considera que o ordenamento jurídico português “necessita fortemente de ser adequado” à Convenção, já que, “em muitos aspetos, ainda não foi”. Em declarações à Lusa, a também presidente da direção da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas concretiza: “falta o essencial”.

Isto porque, explica, a “linha essencial da Convenção tem a ver com a prevenção e a repressão”, ou seja, a tónica não é posta apenas nas leis, mas na “atuação coordenada de todas as políticas sociais”. O tratado pressupõe a criação de condições que previnam a própria violência. “Não se trata apenas de a erradicar ‘tout court’, trata-se de a prevenir, para a poder erradicar de uma forma mais consequente”, explicita. Ora, isso passa por pôr a tónica na capacitação das mulheres (o empowerment utilizado na língua inglesa) e, “nesse aspeto, Portugal ainda tem muito a fazer”, observa.

Portugal — que ratificou a Convenção em 2013, tendo esta entrado em vigor em 2014 — “tem feito bastante nos últimos anos, é um facto, e isso é algo que não pode ser negado e merece ser reconhecido e louvado, mas ainda tem muito por e para fazer”, constata Teresa Féria. Aliás, a implementação da Convenção é uma questão global. “Não é um tratado que se execute por si próprio”, exigindo “todo um processo legislativo de conformação das disposições da Convenção com os respetivos ordenamentos jurídicos nacionais”, realça.

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Nos dias de hoje, o grande desafio da Convenção é “poder estar efetivamente em vigor” em todos os 47 Estados-membros do Conselho da Europa e noutros que queiram a ela aderir. Isso mesmo ficou demonstrado com a retirada da Turquia, país cuja principal cidade, Istambul, deu o nome à própria Convenção. A saída da Turquia, que levou milhares de pessoas às ruas do país em protesto, não surpreendeu a juíza-conselheira portuguesa. “Já há pelo menos dois anos que vêm sendo feitas movimentações nesse sentido e o mesmo sucederá, muito provavelmente, na Polónia”, prevê.

Há uma década, a Convenção de Istambul foi um passo “significativo, mas não foi uma novidade”, porque já vinha sendo traçado um caminho no sentido de proteger os direitos das mulheres no quadro dos direitos humanos, nomeadamente desde a CEDAW (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, aprovada em 1979 e que entrou em vigor em 1981). Ainda assim, Teresa Féria não duvida: “É uma Convenção que serve a atualidade.” Como qualquer documento, “é sempre passível de sofrer aperfeiçoamentos, mas serve profundamente a atualidade”, frisa.

Portugal assinala década de combate global à violência sobre mulheres

A presidência portuguesa do Conselho da União Europeia (UE) vai assinalar, na terça-feira, o décimo aniversário da Convenção de Istambul, um tratado pan-europeu de prevenção e combate à violência sobre mulheres e meninas.

Até hoje, a Convenção de Istambul foi ratificada por 33 países e assinada por outros 12 Estados ou entidades supranacionais (entre as quais a própria UE, que a assinou em 2017).

Mas, dez anos volvidos, nada pode ser dado como garantido naquele que se considera um marco histórico, por se tratar do primeiro instrumento internacional juridicamente vinculativo para combater a violência de género e a violência doméstica. Isso ficou demonstrado quando, há duas semanas, a Turquia, país que deu berço à Convenção, abandonou o tratado do Conselho da Europa, assinado a 11 de maio de 2011.

Mas esse não é o único “elefante na sala”: a Convenção de Istambul continua sem ser assinada por seis Estados-membros da UE – Hungria, Letónia, Lituânia, Eslováquia, República Checa e Bulgária – e a Polónia, onde o governo nacionalista considera que a Convenção incentiva demasiado o debate sobre questões de género, ameaça deixá-la também.

Na Turquia, que anunciou que abandonava a Convenção a 20 de março, milhares de pessoas saíram às ruas, em protesto. A decisão foi tomada por decreto, emitido pelo Presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, o mesmo que assinou o tratado, enquanto primeiro-ministro, em 2011. O Governo turco — que anunciou a intenção de criar um tratado próprio — justificou a decisão considerando que o tratado foi “sequestrado por um grupo de pessoas que tentam normalizar a homossexualidade”, o que é “incompatível” com os “valores sociais e familiares” da Turquia.

A decisão da Turquia — país onde o homicídio de mulheres aumenta desde há uma década — foi criticada pela UE, tendo o Alto Representante para a Política Externa, Josep Borrell, acusado o governo de Erdogan de enviar “uma mensagem perigosa”. Também os líderes da UE, reunidos em Conselho Europeu a 25 de março, comunicaram estar dispostos a “fortalecer a cooperação” com a Turquia, mas admitiram preocupação face às decisões “contrárias às obrigações da Turquia de respeitar a democracia, o Estado de Direito e os direitos das mulheres”. No mesmo dia, a secretária de Estado dos Assuntos Europeus, Ana Paula Zacarias, falou em nome da presidência portuguesa do Conselho da UE para qualificar a saída da Turquia da Convenção de Istambul como “grave e lamentável”.

É com este pano de fundo que a presidência portuguesa (juntamente com as presidências alemã, que a antecedeu, e eslovena, que a seguirá) organizam a reunião de alto nível desta terça-feira, a partir do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, mas em formato digital. Entre as 8h45 e as 15h30 (hora de Lisboa), “o estado da arte” da Convenção será apreciado por políticos, académicos, especialistas e ativistas. Entre os oradores estão, entre outros, a ministra da Presidência, Mariana Vieira da Silva, e a secretária de Estado para a Cidadania e Igualdade, Rosa Monteiro, a comissária europeia para a Igualdade, Helena Dalli, e representantes do Conselho da Europa, do Parlamento Europeu, do Instituto Europeu para a Igualdade de Género, do serviço europeu de polícia Europol e do Lobby Europeu de Mulheres.