Continua instalada a confusão sobre o reforço do apoio aos trabalhadores independentes. E a audição parlamentar desta terça-feira com a ministra do Trabalho veio acrescentar mais um capítulo ao braço de ferro entre o Governo e o Parlamento. É que os deputados que aprovaram a alteração, numa posição comum contra a vontade do PS, asseguram que tinham uma intenção muito diferente da que foi interpretada pelo Governo. Afinal, dizem que mudaram apenas o período de referência para o cálculo dos apoios — e não toda a fórmula de cálculo.

O apoio à redução da atividade dos independentes é, atualmente, calculado a partir do “valor da média da remuneração registada como base de incidência contributiva no período de 12 meses anteriores ao da data da apresentação” — ou seja, tem em conta os rendimentos de 2020 e, ao mesmo tempo, o montante sobre o qual são aplicados os descontos (a tal base de incidência contributiva). Mas como 2020 foi um ano de pandemia, com restrições que afetaram a atividade de vários trabalhadores, esta fórmula de cálculo deu a muitos o valor mínimo, na argumentação dos deputados. Tendo isso em conta, a alteração aprovada no Parlamento prevê que o valor atribuído passe a ser aferido a partir do “rendimento médio anual mensualizado” em 2019.

Apoios sociais promulgados pelo Presidente têm “efeito perverso e injusto”, avisa ministra do Trabalho

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Na interpretação do Governo, esta alteração significaria que deixava de haver uma ligação entre a prestação do apoio social à contribuição que o trabalhador independente fez, para passar a ter em conta a faturação. Isso teria como efeito, por exemplo, que “um trabalhador que fez descontos de 28 euros tivesse exatamente o mesmo apoio social de quem tenha feito 100 euros”, disse Ana Mendes Godinho numa entrevista ao Polígrafo SIC. Dias depois, a ministra chegou a dizer que a alteração aprovada – e promulgada por Marcelo Rebelo de Sousa – “o que faz, essencialmente, é alterar de uma forma, e com um efeito perverso e injusto, o sistema de apoios e o sistema de proteção no âmbito da Segurança Social”.

O problema, dizem os deputados que aprovaram a mudança no parlamento, é que o Executivo terá entendido mal e não era essa a alteração pretendida. O que se mudou foi o período de referência — dos últimos 12 meses para 2019.

“O Parlamento alterou o decreto-lei do Governo que retomou em janeiro os apoios de 2020. Mas não alterou o decreto original dos apoios onde se estabelecem as formas de calcular os rendimentos para efeitos da Segurança Social”, começou por explicar o deputado do Bloco de Esquerda José Soeiro. Assim, argumenta, “o que o Parlamento fez foi remeter o rendimento de referência para o ano de 2019“.

“Não há nenhuma alteração estrutural nas regras de aferição do rendimento relevante. Apenas uma alteração do ano do rendimento de referência. (…) O Governo quer interpretar a lei de uma forma diferente da lei que está escrita e diferente de quem a redigiu e a aprovou, do legislador. Estão aqui as pessoas que aprovaram e estamos a dizer-lhe, senhora ministra. A lei o que diz é altera o rendimento de referência. Não altera os mecanismos de aferição do rendimento relevante“, sublinhou José Soeiro.

Perante a explicação dos deputados, Ana Mendes Godinho concluiu que a interpretação do Governo e a dos deputados se tratam de “dimensões técnicas completamente diferentes” que provocam uma “distorção total”. O “rendimento médio anual mensualizado”, que consta na proposta aprovada no Parlamento, remete “para o volume de vendas, de prestação de serviços ou de bens”, o que, sabe-se agora, não era intenção dos deputados. Por isso, a ministra pediu uma clarificação à intenção dos deputados. Até porque, se a primeira interpretação do Executivo estivesse correta, a operacionalização iria obrigar a uma “alteração total na base de cálculo e no próprio sistema informático”.

Se a intenção for outra, a de mudar só o período de referência, Ana Mendes Godinho também aponta falhas: diz que “haverá muitas situações em que os trabalhadores vão receber menos” porque os meses de janeiro e fevereiro foram o segundo e o terceiro meses com apoios médios mais altos desde março de 2020. “A operacionalização desta alteração depende da vontade real, do que a Assembleia queria“, resumiu Mendes Godinho.

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“Não foi por falta de disponibilidade orçamental que o Governo deixou de dar apoios”

A audição marcada pelo imbróglio do diploma dos apoios sociais teve também a presença do ministro da Economia, que insistiu que a pandemia tem uma tal dimensão que os apoios não são suficientes para fazer face a todas as perdas de famílias e empresas. Pedro Siza Vieira respondia às críticas de Isabel Pires, do Bloco de Esquerda, reconhecendo que o Governo não consegue combater todos os efeitos da crise.

“Não tome pelas declarações de qualquer membro do Governo que está tudo bem”, disse Siza Vieira. “Não há maneira de os apoios públicos fazerem face a tudo o que está a acontecer”. O que o Governo quer fazer é “mitigar” os problemas das empresas e das famílias.

Em todo o caso, “não foi por falta de disponibilidade orçamental que o Governo deixou de dar apoios”, garante o ministro. “Não é por uma vontade de proteger o défice” que isso aconteceu.

“Sempre dissemos que não vamos a todo o lado”, referiu Siza Vieira, sublinhando que os novos apoios são dirigidos aos setores mais afetados pela pandemia. O ministro refere que há empresas que não cumprem os critérios definidos pelo Governo, uma questão que é alvo de críticas da oposição, nomeadamente do PCP, que quer ver ajudadas todas as famílias e empresas afetadas pela crise.

Questionado ainda sobre o programa Apoiar, de subsídios a fundo perdido, Pedro Siza Vieira explica que os critérios de elegibilidade têm sido alargados, mas defende que algumas das reivindicações dos partidos iriam “dificultar ou tornar impossível a gestão do programa”.

Por exemplo, quando o apoio foi pensado para as empresas que começaram a atividade em 2020, o ministro diz ter identificado “uma dificuldade muito grande de perceber” qual seria “um critério claro de definir o montante do apoio”. Para que fosse operacionalizado, o Governo teria de “começar a introduzir os custos não cobertos pelas receitas”, o que introduziria “muita complexidade à candidatura”.

Algumas das situações em que foram solicitadas alterações “tornam muito complexo o processo”, diz ainda. “Do lado do Estado não teríamos capacidade de acompanhar ou executar”. O programa “é totalmente informatizado” a partir de “verbas e dados que pré-existem e podem ser rapidamente verificados”, explica Pedro Siza Vieira.