Comecemos pelo meio da conferência de imprensa do novo programa de Bruno Nogueira na SIC, “Princípio, Meio e Fim”. Tudo feito virtualmente, através da plataforma Zoom, com jornalistas, autores e atores do programa — Nuno Markl, Salvador Martinha, Jessica Athayde e Nuno Lopes. A certa altura, Filipe Melo entra na reunião. O próximo diálogo pode parecer ficção, mas não é.

Bruno Nogueira – “Parece que o Filipe Melo está na Eurovisão”.

Nuno Markl – “Mas estás de cuecas?”

Filipe Melo – “Estou. Aliás, estou todo nu das pernas para baixo. Querem que mostre?”

A conversa aconteceu e nenhum dos presentes a poderá negar. Pode parecer um regresso ao programa “Uma Nêspera no Cu”, mas não é. Pode parecer um relembrar do que foi “Como é que o Bicho Mexe?”, mas não é. Ora, o novo programa de Bruno Nogueira, que estreia já no próximo domingo, além de juntar alguns dos humoristas e atores mais conhecidos do país, tem algo de tão inusitado  como este diálogo inicial: quer explorar o erro, sem medos, à mesa de jantar.

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Seis episódios com cerca de 40 minutos onde só as personagens estão definidas. O passado não interessa — nem mesmo os cerca de sete meses, com pandemia, entre hotéis, escrita, avanços e recuos, que foram precisos até se chegar ao dia de estreia. Quanto ao guião? Duas horas para ser escrito a quatro mãos, nem mais nem menos. E até esse processo faz parte do programa. É um filme e um making off. Quer dizer, pode nem bem ser isso. Então, o que será? Vamos ao princípio da conferência de imprensa.

Aceitar o erro, transformar o momento de escrita “num espetáculo”

“O programa nasce do erro, do falhanço. Quando se erra, tenta-se resolver. Mas é mais interessante a vertigem que esse momento provoca a quem está a ver. Aqui aceitamos o erro, não o corrigimos nem o desculpamos”, afirma Bruno Nogueira ao Observador. Essa vertigem transforma-se então num momento de criação que começa na escrita do guião.

“Escrever o episódio também será representado no programa.  Aqui a regra é, se o guião vai com erros, se vier tudo em maiúsculas, por exemplo, o ator tem de gritar. Se uma palavra está mal escrita, tem de ser dita assim. O ato de criação está sempre desnivelado em relação à representação. Esta é também uma homenagem a quem escreve, quem faz, produz, executa e cria”, esclarece o humorista.

Ou seja, o espetador tem então um vislumbre, quase como um voyeur, do que se passa antes daqueles quatro amigos estarem sentados à mesa. E que é, no fundo, parte fundamental da engrenagem, que fica muitas vezes por mostrar. “Foi filmado esse processo de criação, quando estamos ‘in the zone’, concentrados. A certa altura esquecemo-nos da câmara e isso tem muita força. As pessoas vão ter uma câmara voyeur que raramente se vê”, conta Salvador Martinha, um dos autores do programa.

Os quatro autores, Bruno Nogueira, Salvador Martinha, Nuno Markl e Filipe Melo. Fotografia de Vicente Calado.

Para Nuno Markl, houve um esforço para que a escrita “fosse também um espetáculo”. Ou seja, passa a ser um momento televisivo que não costuma ir para o ar. “Essa parte é tudo menos monótona, às vezes parecia um thriller, porque tínhamos de desarmar uma bomba”, diz. E nesse processo, podem fazer parte até as distrações que cada um dos quatro autores — e talvez cada um de nós tem, quando pega num lápis ou no teclado do computador — quando chega a hora de escrever. Uma possível nova modalidade de escrita que rasga as tradições de guionismo. Essa parece ser, pelo menos, a ambição dos quatro autores. Resta ver para crer.

Quanto a Filipe Melo, pianista, co-autor de bandas desenhadas como “A Balada de Sophie” e autor da banda sonora de “Princípio, meio e fim”, houve um problema: pedir a alguém habituado a estrutura para ajudar a resolver o caos criativo à mesa, onde o consenso é exigido. “Quando se juntam quatro pessoas obviamente diferentes, vai haver discussão e caos. E no início isso foi difícil para mim. Mas o Bruno disse-nos que isto tinha de ser como um grupo de miúdos a brincar. É como termos bonecos de luxo (os atores), que podemos usar e fazer o que nos apetecer”, afirma. Portanto, não há regras, não há erro nem sequer uma lógica necessária.

Um programa híbrido onde a pressão das audiências “está do lado da SIC”

Essa liberdade para quem escreve teve de ser resolvida pelos tais ‘bonecos de luxo’, que neste caso são cinco atores: Nuno Lopes, Albano Jerónimo, Rita Cabaço, Jessica Athayde e o próprio Bruno Nogueira, os escolhidos para estarem à mesa, onde o jantar se repete, mas sem que as histórias do passado que saíram dali regressem. “Só podia aceitar este desafio porque há empatia, porque os conheço e me revejo neles. Na comédia somos todos crianças de sete anos. Há improviso no texto, o desafio foi mesmo fazer o que estava escrito. Fomos pianistas de música clássica, a seguir as partituras à risca”, refere Nuno Lopes.

Todos são então “forçados” a aceitar o erro, porque é preciso consenso, sem espaço para grandes diplomacias. Da realizadora Cristiana Miranda à produtora Sandra Faria, todos têm de agarrar a liberdade e seguir. Até o próprio diretor de programas da SIC, Daniel Oliveira, que decidiu apostar “numa ideia absolutamente original”. “A televisão comercial tem espaço para abordagens disruptivas. Esta é uma rutura com o que já foi feito, ficção com realidade muito bem conseguido, devolvendo uma série de rostos à SIC”, afirma. Já sobre a pressão das audiências, especialmente aos domingos, onde a SIC e TVI batalham pela vitória, essa está mesmo do lado da estação de televisão de Paço d’ Arcos.

Se o programa pode apresentar mais contenção do que “Como é que o Bicho Mexe?” por estar numa plataforma mais conservadora como a televisão, que aposta numa audiência mais tradicional, Bruno Nogueira prefere pegar na palavra “compromisso”, tanto da SIC, como dos autores. Ou seja, nenhum dos lados podia perder a sua identidade. Mas há uma garantia: “é um formato sem pi’s”, afirma Daniel Oliveira.

Cinco personagens juntam-se ao jantar durante seis episódios. O guião nunca é igual. Fotografia de Vicente Calado.

Quanto ao género do programa, não há certezas. Não é uma sitcom, nem uma peça de teatro ou um reality show. Fiquemos pelo híbrido entre realidade e ficção. “Será que queremos catalogar?”, chuta Bruno Nogueira. Talvez não, talvez não. Está feito o zoom, não dá para voltar atrás. Quer dizer, falta o fim, que se liga à possibilidade do programa “se partir” em mais conteúdos na plataforma de streaming da SIC, a Opto, que poderá ter alguns momentos exclusivos. “Eu tenho uma ideia: meter o Daniel Oliveira a assistir aos seis episódios e depois filmar o react”, lançou Salvador Martinha. Fica a ideia para uma possível segunda temporada.