Latifo Fonseca, padre da Diocese de Pemba, em Cabo Delgado, alertou em entrevista à Lusa para os indícios de recrutamento de crianças por parte dos grupos insurgentes que atormentam a região norte de Moçambique.

“Algumas pessoas que foram aos acampamentos de insurgentes encontraram crianças”, referiu o missionário e investigador do Instituto de Estudos Sociais e Económicos (IESE) moçambicano, de acordo com relatos que ouviu de quem já foi raptado pelos grupos armados e conseguiu fugir. As descrições alinham-se com outras de mães cujos filhos desapareceram durante a investida de insurgentes contra as aldeias da região.

“Temos medo de que estejam a usar essas crianças”, a entrar na idade da adolescência, doutrinando-as em práticas extremistas e de violência armada, tirando partido das suas “habilidades e inteligência fresca”, disse.

A partir dos relatos recolhidos, Latifo Fonseca alertou que parece existir uma estratégia geral de recrutamento em que os novos insurgentes passam por diferentes acampamentos e realizam treinos que podem durar até dois anos.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

“Achamos que as crianças também possam ser instrumentalizadas”, neste processo.

Ao padre Latifo Fonseca já foi feito o apelo por parte de quem esteve na linha da frente, alertando para a necessidade de se pensar não só nos deslocados, que estão em Pemba, mas também nas crianças e adolescentes que estão nas bases de insurgentes.

O investigador disse que é necessário “pensar em como resgatar” estas crianças e adolescentes, ponderando que é necessário começar por recolher informação sobre os esconderijos dos grupos armados.

“Nem todos aqueles [que lá estão] são culpados, muitos foram raptados”, sublinhou.

“Devem ser muitas crianças porque há muitas mães a chorar pelo desaparecimento [delas]. Há muitas mães que se queixam”, contou.

Latifo Fonseca referiu também que podem haver menores a ser utilizados “como espiões”.

“No dia-a-dia pensarmos que estão a vender amendoins” pelas ruas das cidades e vilas, mas “são aqueles que têm informações”, exemplificou.

Ao mesmo tempo, o rapto de raparigas surge associado a casamentos forçados com membros dos grupos armados.

O risco que se afigura para o futuro social da região é de que as crianças “poderão voltar mais extremistas”.

“Não tiveram capacidade de assimilação da razão num convívio familiar saudável e a única realidade que veem é a da guerra”, disse Latifo Fonseca.

O recrutamento de crianças pode “perpetuar a guerra, porque se forem nativos, não terão outro lugar” para estar e “caso a guerra termine, mesmo tendo amnistia, por exemplo, não terão condições para ser bem acolhidas”.

Trata-se de um processo “diferente” daquele por que passa “um adulto que, quando sai, sabe que, um dia, viveu saudável”, descreveu.

“Temos de cuidar disso” e, se houver forma, “tentarmos resgatar” quem se esconde nas matas, reafirmou.

“Nenhuma mãe vai denunciar que o filho é terrorista – porque isso é próprio do sangue de uma mãe – e ele continuará convivendo connosco enquanto faz parte” dos grupos insurgentes.

“Temos de dar mais atenção ao assunto, para o eliminar pela raiz, senão estes [novos recrutas] vão ser piores que os primeiros terroristas”, referiu o padre em relação às crianças que estão nos acampamentos rebeldes das matas de Cabo Delgado, mas também em relação às crianças deslocadas que chegam a pontos seguros da província.

E prosseguiu: “Elas também podem constituir” um avolumar de problemas, criando insurgentes “piores do que aqueles que estão lá”, nas matas.

Latifo Fonseca defendeu que não basta inscrever as crianças nas escolas “e deixar assim” o assunto. Mesmo as crianças deslocadas, que se calcula sejam quase metade dos 700.000 deslocados, “devem ter acompanhamento” na forma como ocupam o tempo, procurando ocupações extracurriculares, como o desporto, por exemplo.

No caso de religião, sugere que se siga “que madraças (escolas islâmicas), catequeses ou outro acompanhamento cultural estão (as crianças) a ter”.

“É fundamental incluirmos aqui antropólogos, sociólogos e religiosos para que estas crianças, que parece estarem num ambiente saudável, tenham um acompanhamento direto”, advertiu.

Caso contrário, “podem tornar-se rebeldes” e, para o evitar, o trabalho a realizar deve mobilizar todos os membros de cada comunidade.