A vida de Muanacha António depois da invasão da Quissanga, na província de Cabo Delgado (Moçambique), em 2020, é como que um olhar para o futuro dos deslocados de Palma: incerto, repleto de saudade e de revolta.

“Gostaria mesmo era de voltar a casa. A minha vida está habituada [aquilo] lá. Sou uma camponesa, trabalhava na agricultura. Aqui não consigo trabalhar, porque a área é nova para mim, não sei onde posso abrir o campo para a agricultura. Lá [em Quissanga] sei onde encontrar os campos para a agricultura”, diz à agência Lusa Muanacha António.

Muanacha tem 29 anos e fugiu da vila de Quissanga em setembro, depois de meses de ataques constantes dos insurgentes, apoiados pelo movimento terrorista Estado Islâmico, que tiveram como ponto alto o final de abril, quando a sede de distrito foi mesmo ocupada.

“Atacaram pela primeira vez no dia 29 de janeiro [de 2020], algumas pessoas conseguiram sair [da vila], aquelas que tinham família de fora, e quem não tinha família ou condições para sair ficou. Eu continuei lá até ao dia 25 de setembro. Voltaram a atacar e partimos na noite desse dia”, descreve.

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Muanacha está sentada no banco em frente à tenda que lhe foi atribuída quando chegou no dia 27 de setembro de 2020 com os quatro filhos, o marido e a mãe. Uma das filhas observa-a, atenta, partir da tenda, que hoje constitui a sua casa.

São quatro paredes feitas de bambu, uma lona de plástico, um pequeno coletor de energia solar que fornece alguma energia, uma panela ao lume e o banco onde está sentada.

Encontrá-la não foi difícil, já que a “casa” provisória onde está a viver no campo “25 de Junho”, em Metuge, localiza-se relativamente perto do centro, ao lado de uma antiga escola onde os líderes das diferentes comunidades de deslocados estão reunidos durante o dia.

O campo foi construído para acolher 3.000 famílias, mas ultrapassou largamente a capacidade. Agora dá abrigo a 5.872 agregados familiares – 23.589 pessoas contabilizadas -, de acordo com a informação disponibilizada pelos responsáveis pela gestão deste espaço para deslocados.

A lona que dá um teto à família de Muanacha já está rota e precisa de substituição. Aliás, este é um problema recorrente em todo o campo, assim como a falta de utensílios para cozinhar ou meios de transporte que permitam levar as pessoas até ao hospital mais próximo.

No hemisfério sul, o inverno está a chegar e com ele a chuva, por isso, é preciso substituir lonas e reforçar a estruturas das tendas, já que o solo do “25 de Junho” não absorve a água, nascendo poças lamacentas atrativas para os mosquitos que transmitem a malária, a doença mais presente no campo.

Hoje, durante a conversa com Muanacha, um automóvel com um altifalante alertava a população para o início de uma campanha de distribuição de medicamentos contra a malária.

Também por isto, pelo medo permanente das doenças, se Muanacha pudesse voltaria imediatamente a casa, da qual tem “muitas saudades”.

“Arroz, mandioca, milho e feijão nhemba”, assim como “alface, repolho, cebola e outras hortícolas”. Tudo isto era cultivado por Muanacha na sua pequena ‘machamba’ [horta], explica, com saudade, à Lusa.

“É quase tudo difícil. Não sei como conseguir dinheiro, muita coisa… A roupa, bens de casa. Lá conseguia com aquilo que produzia na ‘machamba’. Repartia uma parte para o consumo, a outra parte vendia e conseguia comprar outras necessidades”, lamentou.

O “25 de Junho” é um “campo de acomodação” temporário. As comunidades vão, entretanto, ser transferidas para outras áreas de Metuge onde as autoridades esperam integrar os denominados campos de realojados.

Muanacha e a família vão eventualmente encontrar uma casa, como as que existem na comunidade de Quilite, que agrega 1.705 deslocados, na área de Ntokota (Metuge), a cerca de 40 quilómetros do “25 de Junho”.

Aqui já há jardins construídos — havia mandioca e melancia plantadas quase por todo o lado -, há alpendres, latrinas e casas de banho, como descreveu Muamade Azir, de 72 anos, natural da aldeia de Quilite, em Quissanga, de onde fugiu com a família, “que é quase uma comunidade”, com 30 pessoas.

Antes desta aldeia ser erguida, a vida era “anormal” e “sem espaço”, mas a saudade de casa não é substituída, admite.

Contudo, as histórias de Muanacha e Muamade têm um elemento em comum: a ausência de soluções para sobreviver sem ajuda.

“Temos muitas coisas em falta. Não temos esteiras, não temos cobridores, não temos dinheiros e não temos sabão”, sustentou Muamade Azir.

O percurso de Muamade é um olhar para o que pode ser o futuro da família de Muanacha António, bem como os mais de 23.000 deslocados de Quissanga que vivem no “25 de Junho” ou muitos outros de uma província que contabiliza 700 mil pessoas obrigadas a sair das suas casas.

Apesar do trabalho constante das organizações não-governamentais nestes campos, o número de pessoas deslocadas em Cabo Delgado não para de aumentar.

Para conseguir dar esta resposta até ao fim de 2021, o Programa Alimentar Mundial precisa de um total de 82,4 milhões de dólares ou cerca de 10 milhões de dólares por mês (total 69,24 milhões de euros ou 8,4 milhões de euros por mês).

As autoridades moçambicanas retomaram o controlo da vila de Palma, atacada a 24 de março por grupos rebeldes, provocando dezenas de mortos e feridos, num balanço ainda em curso.

Os grupos armados aterrorizam Cabo Delgado desde 2017, sendo alguns ataques reclamados pelo grupo ‘jihadista ‘ Estado Islâmico, numa onda de violência que já provocou mais de 2.500 mortes e 700 mil deslocados.

O ataque a Palma levou a petrolífera Total a abandonar por tempo indeterminado o recinto do projeto de gás em construção na península de Afungi, com início de produção previsto para 2024 e no qual estão ancoradas muitas das expectativas de crescimento económico de Moçambique na próxima década.