O Facebook é incapaz de impedir que os líderes mundiais e outros políticos enganem o público ou assediem os opositores, apesar dos constantes avisos (incluindo internos) de que essas situações acontecem, revelou uma investigação do jornal The Guardian.

A política da empresa não permite que uma pessoa tenha mais do que um perfil individual, mas permite que uma mesma pessoa tenha várias páginas — que, tal como os perfis pessoais, podem reagir, comentar e partilhar. Muitos dos abusos partem precisamente destas páginas “falsas” que promovem determinados conteúdos, manipulando os algoritmos do Facebook e, consequentemente, a perceção dos utilizadores.

Fake News. Facebook bloqueia mensagens políticas antes das eleições nos EUA

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Segundo a investigação, a empresa esforçou-se mais em travar os abusos nos países ocidentais, como nos Estados Unidos ou na Europa, onde a pressão mediática é maior, mas dedicou pouca ou nenhuma atenção a países como o Afeganistão, Iraque ou grande parte da América Latina.

Sophie Zhang, que agora denuncia as más práticas do Facebook, foi analista de dados na empresa e fez parte do grupo de trabalho que devia identificar estes “comportamentos não-autênticos” na rede social, como aqueles que eram criados pelas tais páginas — que não sendo falsas, tinham um comportamento falsificado.

O que a antiga funcionária percebeu foi que, mesmo em situações que identificou como graves, o Facebook demorou meses a agir porque defendia um nível de prioridades diferentes — como o interesse nos países mais ricos. Segundo o jornal britânico, Sophie Zhang considera que o Facebook tem muita relutância em punir políticos poderosos e que, quando age, as consequências são muito brandas.

Na mensagem de despedida aos colegas, Zhang expôs as situações de abusos que identificou — semelhantes ao que aconteceu durante as eleições americanas de 2016 — e a falta de ação sobre elas por parte da empresa, como o facto de terem levado mais de um ano a resolverem a situação relacionada com o Presidente das Honduras, apesar dos constantes avisos.

Simplesmente não nos importamos o suficiente para detê-los”, escreveu na nota, citada pelo Guardian. “Sei que tenho sangue nas minhas mãos.”

O Facebook apagou a publicação da antiga funcionária e conseguiu bloquear o site onde ela tinha colocado uma cópia desta nota enviada aos colegas — e à qual o jornal The Guardian agora teve acesso.

Sophie Zhang contou ao The Guardian como esbarrou em inúmeras questões burocráticas, que não lhe permitiram levar as situações que identificava até quem pudesse resolver os problemas, ou a falta de separação entre aqueles que devem fazer valer as regras da plataforma e os que trabalham para manter bons relacionamentos com os governos dos países.

Equipas de fact-checking também acusam Facebook de critérios dúbios

No início de março, equipas responsáveis por fact-checking, algumas em parceria com o próprio Facebook, apelaram a que a empresa mudasse a regras em relação aos políticos e que os impedisse de disseminar desinformação relacionada com a pandemia de Covid-19.

A Agência Lupa, a primeira organização a fazer fact-checking no Brasil, identificou pelo menos 29 situações em que o Facebook permitiu que o Presidente Jair Bolsonaro promovesse desinformação e falsa ciência.

“O que fizeram foi mostrar com base nas evidências do relatório que, dependendo do país em que se está, as políticas são aplicadas de maneiras muito diferentes”, disse Peter Cunliffe-Jones, consultor sénior da International Fact-Checking Network (IFCN).

O Facebook, por sua vez, rejeitou as acusações e disse, em comunicado que, ainda que proibissem “alegações falsas sobre tratamentos não comprovados e medidas de segurança, como o distanciamento social”, permitem “discussões sobre o impacto das medidas políticas, como confinamentos ou desenvolvimentos na investigação científica”.

E é assim que permitem que Bolsonaro continue a falar da hidroxicloroquina, que não demonstrou ser eficaz no tratamento ou prevenção da Covid-19, ou critique as medidas de confinamento e distanciamento social que alguns governadores querem implementar nos seus estados.