José Sócrates — que, dos 31 crimes de que estava indiciado pelo Ministério Público, vai responder em tribunal por seis — apelida como “injusta e falsa” a consideração tecida pelo juiz Ivo Rosa de que o ex-primeiro-ministro foi corrompido pelo amigo Carlos Santos Silva. Num artigo de opinião no jornal Público, publicado esta segunda-feira, Sócrates tece ainda comentários sobre a evolução da extrema-direita em Portugal — “a direita salazarista nunca deixou de existir” — e a esquerda política — por ter ficado em silêncio durante a Operação Marquês.

Sobre esse processo, cuja decisão instrutória foi conhecida na sexta-feira, José Sócrates responde ao juiz Ivo Rosa por ter defendido que o ex-governante foi corrompido ao receber 1,7 milhões de euros do amigo Carlos Santos Silva — o que poderá configurar um crime de corrupção sem demonstração de ato concreto (que já prescreveu). Sócrates aponta o dedo ao juiz de instrução, acusando-o de não ter resistido à “tentação de criar novas acusações”.

“Pronuncia-me por um crime de que nunca estive acusado e do qual nunca me pude defender. Transforma o alegado “testa de ferro” em “corruptor” sem comunicar aos visados esta alteração de factos. Passei sete anos a defender-me da mentira da fortuna escondida e no final ouço, pela primeira vez, que há indícios (que alguns imediatamente transformam em provas e em sentença transitada em julgado) de um crime que já prescreveu. Essa acusação é tão injusta e falsa como as outras e dela me defenderei mais à frente“, escreve José Sócrates.

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O ex-primeiro-ministro volta a dizer que a Operação Marquês “nunca foi um processo judicial, mas um processo político”, encetado para, argumenta, o “afastar do debate público”, “impedir” uma candidatura a Belém,  “criminalizar as políticas” do governo que liderou e “legitimar as políticas de austeridade do governo” que lhe sucedeu (aliás, Sócrates também acusa o governo de Pedro Passos Coelho de ter sido “o primeiro em democracia a iniciar esta caça ao homem”).

Segundo José Sócrates, essa estratégia teve um “sucesso absoluto” — não só porque o PS perdeu as eleições legislativas, como Marcelo Rebelo de Sousa foi eleito sem que o PS tivesse declarado o apoio ao então candidato. Nessa sequência, o ex-primeiro-ministro refere mesmo que a Operação Marquês “constitui um marco importante no nascimento e afirmação do primeiro partido da extrema-direita no Portugal democrático”.

Aliás, sobre a extrema-direita, Sócrates evoca várias vezes, sem referir o nome, André Ventura. “A televisão dá-lhe visibilidade e o líder do partido a oportunidade de se lançar na política. Depois de um pequeno teste numa campanha municipal e de uma primeira fala sobre ciganos, fica absolutamente claro que a direita salazarista nunca deixou de existir e fica igualmente claro o que quer ouvir. Chega de uma direita tímida e civilizada. Depois de Trump e de Bolsonaro chegou o momento de afirmação — violência, ódio e intolerância”, atira. Mas também deixa críticas ao partidos à esquerda.

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O ex-primeiro-ministro dá o exemplo de uma manifestação de polícias em frente à Assembleia da República — na qual André Ventura discursou. Defende Sócrates que a esquerda “finge e finge e finge”: “o Partido Comunista considera as reivindicações dos polícias justas; o Bloco de Esquerda critica o Governo por ter sido tão indiferente a essas legítimas aspirações; e o Partido Socialista lembra tudo o que fez pela organização policial. Os manifestantes sentem imediatamente o cheiro da covardia e garantem que doravante serão os donos das ruas”, refere, acrescentando que a manifestação “nada tem a ver com reivindicações profissionais”, mas pretende “afirmar uma nova cultura política, a caminho de um estado policial”.

A referência aos partidos da esquerda, como o PS (embora não o refira concretamente), volta a ser feita mais à frente, quando Sócrates versa sobre a “presunção pública de culpabilidade”. O ex-primeiro-ministro critica o silêncio perante o “caldo cultural que esteve no bojo do processo Marquês”.

A “morosidade insuportável” dos julgamentos acabou. Nós, procuradores e polícias, faremos a nossa própria justiça – já não precisamos de juízes independentes e imparciais. Foi este o caldo cultural que esteve no bojo do processo Marquês, que o permitiu e que o impulsionou. E ao qual a esquerda – toda a esquerda – assistiu em silêncio”.

Sócrates atira ainda que, antes da Operação Marquês, houve duas outras “tentativas de criar um processo judicial” contra si — o Freeport e as chamadas “escutas de Belém”. “Ambas foram desmascaradas e ambas falharam.” “Quando decidiram tentar de novo, asseguraram-se que toda a gente estaria a seu lado — um Governo, uma maioria, um Presidente e uma procuradora-geral. Faltava um juiz. A obrigação legal do sorteio foi então substituída pela “atribuição manual” e o jogo foi viciado”, escreve, referindo-se à distribuição do processo ao juiz Carlos Alexandre, o magistrado que o mandou prender. “Agora o juiz era o seu juiz, escolhido por quem nada quis deixar ao acaso. Eis a trapaça, agora denunciada na decisão instrutória. Eis o escândalo de que ninguém parece querer falar.”

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O ex-primeiro-ministro termina dizendo que a “batalha foi longa e dura, mas a solidão do combate deu-lhe uma beleza singular”. “Houve momentos em que parecia nada mais existir, a não ser essa vontade interior que “mantém acordada a coragem e o silêncio”. Não, não esqueço a ignomínia, mas celebro a oportunidade de vencer esta etapa. E vencerei a próxima porque nunca cometi nenhum crime. Para alguns esta foi a vitória possível. Talvez. Seja como for, só amamos as batalhas difíceis”, conclui.