O Vaticano deverá discutir a obrigatoriedade do celibato dos padres católicos numa cimeira que se realiza em Roma em fevereiro do próximo ano, disse esta segunda-feira à comunicação social o cardeal Marc Ouellet, líder do departamento da Santa Sé responsável pela supervisão dos bispos católico.

O simpósio, sob o mote “Rumo a uma Teologia Fundamental do Sacerdócio”, vai incluir várias conferências sobre distintos aspetos da vida do clero católico e está agendado para os dias 17 a 19 de fevereiro de 2022 no Vaticano, contando com a participação do Papa Francisco.

Em declarações aos jornalistas citadas pelo jornal especializado Crux, o cardeal Ouellet, que está responsável por organizar o evento, assumiu que alguns dos tópicos mais polémicos em torno do sacerdócio — incluindo a obrigatoriedade do celibato e a possibilidade de ordenar mulheres — estarão em cima da mesa, embora tenha insistido que esses não vão ser os tópicos centrais do simpósio.

A questão do celibato é importante“, referiu Ouellet. “Vai ser discutido, mas não vai ser o tema central do simpósio. Não é um simpósio sobre o celibato, no sentido em que precisa de ser analisado mais profundamente. É uma perspetiva mais abrangente.”

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Perante a insistência dos jornalistas sobre se assuntos como o celibato, a ordenação das mulheres ou a inclusão dos chamados viri probati (homens casados) no sacerdócio, o cardeal confirmou: “Posso dizer, seguramente, que nenhum desses aspetos vai ser ignorado, no sentido em que fazem parte do atual contexto da questão do sacerdócio“.

A discussão em torno do celibato obrigatório e da proibição do acesso das mulheres ao sacerdócio é uma polémica antiga na Igreja Católica, mas ganhou contornos concretos no final de 2019, com a realização do Sínodo dos Bispos sobre a Amazónia.

Após seis anos com a ideia de “revolução” a pairar sobre a Igreja Católica, aquela reunião magna dos bispos para discutir a situação do catolicismo na remota região da Amazónia abriu a porta à discussão, em termos concretos, sobre o fim da milenar disciplina do celibato obrigatório dos padres, bem como sobre o acesso das mulheres aos cargos de liderança na instituição.

Como a Amazónia pode desencadear a revolução na Igreja Católica (de que já se fala há seis anos)

Devido à profunda escassez de padres na Amazónia, aliada à enorme extensão do território e às dificuldades nos acessos, há milhares de fiéis católicos que só contam com a presença de um sacerdote católico nas suas comunidades uma vez por ano. Para fazer face a esta dificuldade, os bispos que participaram no Sínodo puseram em cima da mesa a possibilidade de ordenar como padres os chamados “viri probati“, ou seja, homens casados que já assumam naturalmente o papel de guias espirituais naquelas comunidades e que com a ordenação poderiam passar a celebrar missas. Outra possibilidade colocada em cima da mesa foi a de dar um maior destaque à participação das mulheres na liderança das comunidades católicas na Amazónia.

Ambas as medidas abririam um precedente nunca antes aberto na Igreja Católica e poderiam levar ao fim da longa tradição de reservar o sacerdócio a homens celibatários.

No fim da reunião, os 200 líderes católicos que integraram o Sínodo deixaram plasmada no documento final a sugestão de que o Papa Francisco aprovasse uma nova norma na lei eclesiástica que permitisse ordenar sacerdotes “homens idóneos e reconhecidos da comunidade, que tenham um diaconado permanente fecundo e recebam uma formação adequada para o presbiterado, podendo ter família legitimamente constituída e estável, para sustentar a vida da comunidade cristã através da pregação da Palavra e da celebração dos Sacramentos nas zonas mais remotas da região amazónica”.

Padres casados, mulheres mais presentes — e uma estátua roubada. O que fica da reunião que pode mudar a Igreja Católica?

Entre outubro de 2019 e fevereiro de 2020, a Igreja Católica viveu um conturbado período de espera. Durante esses quatro meses, o Papa Francisco refletiu sobre o documento final do Sínodo com o objetivo de produzir um documento legislativo baseado nas recomendações da reunião.

Pelo meio, o notório cardeal conservador Robert Sarah envolveu o papa emérito Bento XVI numa polémica, fazendo sair em modo de pré-publicação o excerto de um livro assinado a quatro mãos com o pontífice alemão no qual era feita uma defesa cerrada do celibato sacerdotal enquanto “indispensável para que o nosso caminho na direção de Deus permaneça o fundamento da nossa vida“.

A pré-publicação do livro foi vista como uma inaceitável ingerência do papa reformado na liderança da Igreja Católica, desde 2013 assumida pelo argentino Francisco. Percebeu-se, dias depois, que Bento XVI havia sido manipulado pelo cardeal guineense: o papa Ratzinger aceitara contribuir com as suas reflexões sobre o tema para um livro do cardeal, mas não aprovara a assinatura da obra a meias. Quando a controvérsia foi tornada pública, Robert Sarah comprometeu-se a não incluir o nome de Bento XVI na capa.

Afinal, o Papa Francisco não vai abrir exceção ao celibato na Amazónia, fechando a porta a padres casados

Não se sabe, ao certo, que impacto teve aquela polémica na tomada de decisão de Francisco, mas a verdade é que em fevereiro de 2020 o papa argentino deixou de fora do seu documento a possibilidade de ordenar homens casados, fechando a porta à quebra da tradição do celibato. “Seria um objetivo muito limitado“, argumentou o Papa, que também deixou de parte a possibilidade de ordenar mulheres, sublinhando que o Vaticano continuava a estudar o assunto.

Dois anos depois, o tema volta a estar em discussão nos mais altos círculos do Vaticano, num simpósio em que também será abordado o problema do clericalismo, assegurou o cardeal Ouellet. Historicamente, o clericalismo tem sido interpretado como uma distorção da doutrina católica que coloca o poder do clero no centro da vida da Igreja — e que, como tem repetido o Papa Francisco, foi responsável pelo modo como o drama dos abusos sexuais de menores foi mantido em segredo durante séculos dentro dos bastidores do poder eclesiástico.

De acordo com o cardeal canadiano que lidera a Congregação para os Bispos na Santa Sé, é necessário desfazer os mal-entendidos em torno do conceito de “poder” atribuído aos padres. “No fim de contas, o poder [do padre] é o poder do amor, é o poder do Ressuscitado”, disse Ouellet. “Quando os padres se clericalizam de um modo negativo, isso significa que intepretam o poder como uma imposição, como se estivessem acima dos outros, a comandar, e isto é uma deformação.”