César fez de escudo, Costa resguardou-se mais e apontou para a frente. Foi mais ou menos esta a estratégia que as cúpulas do PS decidiram seguir na celebração do 48º aniversário do partido, escassos dias depois de a Operação Marquês ter conhecido novos desenvolvimentos e de José Sócrates ter acusado a direção socialista de “traição”. Para evitar contaminações num dia que deveria ser de festa, Carlos César tomou a dianteira e enfrentou o elefante na sala — embora sem nunca o nomear diretamente — e António Costa focou-se em falar de futuro e de autárquicas, sem abdicar de deixar uma frase que se dá a uma dupla interpretação quando disse que “o PS é muito mais que lideranças circunstanciais”.
José Sócrates até ‘entrou’ esta segunda-feira na sessão que aconteceu no Capitólio, em Lisboa, e foi transmitida para os militantes online. Em dois momentos distintos: enquanto o professor Raul Lopes, do ISCTE, apresentava as conclusões de um relatório sobre as marcas do PS no poder local — e elogiava o papel de vários líderes nesse sentido, incluindo o de Sócrates — e quando foi transmitido um vídeo com fotografias de Jorge Coelho também com antigos líderes, a que se seguiu um minuto de silêncio, em homenagem ao homem a quem Costa chamou “a alma do PS”.
Fora isto, ninguém pronunciou o nome do antigo primeiro-ministro — mas César não precisou de o fazer para endereçar o tema mais quente das últimas semanas. Se em 2018 foi o presidente do partido o responsável por desencadear as primeiras críticas a Sócrates, que acabaram com a desfiliação deste do partido para acabar com o “embaraço mútuo”, desta vez voltou a ser César quem subiu ao palco para prometer não “iludir desvios das melhores práticas, erros e omissões” na história do partido, mas reivindicando a ação do PS e o seu património de luta contra a corrupção.
Foi o PS quem esteve na raiz de alterações que deram maior autonomia ao poder judicial, serviram para combater a corrupção e para valorizar provas indiretas nas investigações, como escutas, defendeu César. E é também por isso que o partido deve continuar a envolver-se nas “reformas” para “aprofundar a democracia”, em vez de a “aligeirar”, e no reforço de “mecanismos de proteção”, e não de “desregulação”: mesmo com a pandemia, que coloca a saúde dos portugueses em causa, “a saúde da democracia deve continuar a concentrar das nossas atenções, inclusive nas dimensões regulatórias de que tanto se fala”.
Os “riscos” dos tempos — em que as pessoas podem encontrar “refúgio” em “oportunismos antidemocráticos” — indicam que se deve continuar o tal “percurso de aprofundamento”. E o PS deve envolver-se “ativamente” na concretização de “medidas e reformas instrumentais para combater vazios e descrenças”: é uma tarefa “irrecusável”, sublinhou César.
Costa: “PS é muito mais do que lideranças circunstanciais”
César discursava para uma sala a meio gás (e para um projetor que mostrava uma gigante sessão de videoconferência com outros membros do PS), com cerca de vinte autarcas eleitos em 1976, nas primeiras eleições locais, sentados nas primeiras filas e acompanhados por alguns dirigentes do topo do PS — Mariana Vieira da Silva, Fernando Medina (que também interveio), Duarte Cordeiro, Augusto Santos Silva ou Ana Catarina Mendes foram alguns dos presentes.
À porta, os dirigentes e membros do PS que não tinham feito teste à covid-19 antes, assim como os jornalistas, cumpriam o requisito de fazer um autoteste disponibilizado à entrada. Lá dentro, e depois das intervenções de César, Medina e Maria da Luz Rosinha (secretária nacional para as autarquias), assim como de uma série de vídeos com testemunhos de autarcas antigos e atuais, foi a vez de Costa falar, também de pandemia, mas com uma série de recados para os autarcas e sobre o passado do partido.
Desde logo, uma garantia que frisou a meio do discurso e deixou para a interpretação de quem o ouvisse: “O partido é muito mais do que as suas lideranças circunstanciais”, assegurou, agradecendo aos líderes que vieram antes de si — a começar por Mário Soares e sem esquecer o líder que destronou, António José Seguro, nas eleições primárias de 2014. Depois, por entre citações de José Mário Branco — “o que nós andámos para aqui chegar!” –, a evocação das memórias dos primeiros autarcas e o seu próprio “prazer” em ter sido autarca, classificou o poder local como “uma enorme escola de democracia”: “Não há poder mais escrutinado, fiscalizado, controlado, pelo maior dos fiscais, que é o cidadão”.
Depois, altura de olhar para o futuro: “Quanto mais a luta aquece, mais força tem de ter o PS”, assegurou, lembrando um slogan do partido. Essa “luta” tem agora a ver com a pandemia — e deve ser articulada com os autarcas, por exemplo na vacinação — mas isso “não basta”: “É preciso recuperar o país”.
“Fala-se de milhões mas o que é que são esses milhões? A ferramenta, a matéria prima de que precisamos para investir na qualidade de vida deste país e torná-lo melhor e mais resistente às crises”, defendeu Costa, puxando pelos autarcas do PS: essa recuperação será também um “esforço fundamental” a coordenar com eles.
Exemplos? O dinheiro a investir na rede de cuidados primários, equipando centros de Saúde; a conclusão do objetivo de dar uma habitação condigna às 26 mil famílias que não a têm (uma promessa para cumprir a tempo dos 50 anos do 25 de abril, diz Costa); o investimento para desenvolver o interior e o controlo das alterações climáticas nas cidades, onde as ciclovias — uma referência a uma das grandes bandeiras de Medina em Lisboa — e os transportes podem ajudar. “Ter melhor SNS, mais e melhor habitação, interior mais desenvolvido, cidades mais sustentáveis é o grande esforço de investimento nos próximos anos”, resumiu o primeiro-ministro, aqui no papel de secretário-geral do PS e já com as autárquicas de outubro e a recuperação do país em vista. Para trás, e com o presidente do partido, esforçou-se por deixar o fantasma de Sócrates.