O sucesso das audiências ditou o interesse em bruto e a figura de Arsène Lupin voltou a ocupar montras de livrarias. Criada há mais de um século, voltou a despertar interesse através de uma adaptação televisiva a que Omar Sy deu corpo. Aqui, o ator interpreta Assane Diop, leitor e discípulo do herói de Leblanc. Mais do que procurar formas inventivas, originais e funcionais de fazer um assalto no Museu do Louvre, Diop segue um código de honra que lhe permita repor a justiça. A produção coetânea, com uma personagem coetânea, deixa a figura cavalheiresca da cartola e do monóculo e dá-nos um Omar Sy que é 88 quilos de músculo. Partindo dessa coetaneidade, a produção não caiu no erro de imitar Arsène Lupin, optando pela ação ao jeito de homenagem e inspiração.
Aqui, Assane é um imigrante senegalês cujo pai é incriminado pelo roubo de um colar valioso. Antes de ser preso, ainda deixa ao filho um livro de Leblanc, a partir do qual o miúdo, que vira homem, elabora o plano de vingança para com os patrões milionários que acusaram e instrumentalizaram um homem inocente para cavalgarem no lucro sem consequências. Imbuído da vontade de chegar à verdade, Assane deixa-nos entender que, afinal, a vingança é só o caminho para a justiça. E esse traço de crime como meio de a repor, e que passa por não ceder à ingenuidade de julgar haver outro caminho, já vai beber ao estilo de Lupin. Assim, o crime legal tem uma amnistia imoral que transforma o anti-herói em herói – claro que é fácil mandar a lei às urtigas e querer que tudo lhe corra de feição. Omar Sy atinge então a dimensão do charme necessária à incorporação de um Arsène Lupin: é cavalheiro porque é educado, é manipulador porque é virtuoso, é sedutor porque sabe instrumentalizar a simpatia, ou até simular um flirt quando é necessário.
[o trailer da série “Lupin”, disponível na Netflix:]
O ator escolhido também permitiu à série ilustrar o racismo da sociedade francesa, e também nisto se vê a amnistia moral dos crimes legais. Assane Diop rouba as joias a uma senhora que tem saudades do Congo Belga e o furto sabe a vingança pela injustiça ou a um pequeno gesto de reposição de justiça. Sabe, pelo menos, a não comer calado. Assim, além da dimensão de Sherlock Homes, também foi possível nesta personagem explorar a de um Robin Hood. Aliás, o que dá início a toda a trama – a incriminação do pai de Assane – não parece ser independente da cor da pele do injustiçado, que seria, logo à cabeça, um alvo fácil.
Como nasceu Arsène Lupin
A convite de Pierre Lafitte, editor da revista Je sais tout, para publicar histórias de um detetive que pudesse competir com a figura de Sherlock Holmes, Leblanc publicou, em 1907, Arsène Lupin, gentleman-cambrioleur, um livro com nove aventuras de Lupin, no início do século XX, com as quais o apresentou ao público. O protagonista é elegante, inteligente, engenhoso, e muito mais do que alguém que rouba para encher os bolsos. A sua aparente falta de escrúpulos está, afinal, imbuída de um código de honra, que pode ser visto em 17 romances e 39 contos.
Anti-herói, Lupin é um dandy que dá cabo de burgueses. Ao criá-lo, Leblanc assumiu ainda a rivalidade com Conan Doyle, que viu o seu herói ridicularizado na literatura do francês, já que Leblanc criou um detetive chamado Herlock Sholmès a quem Lupin sempre dava a volta.
Ao mesmo tempo, e ainda que a personagem de Conan Doyle tenha sido o ponto de partida de inspiração, também fica evidente o contraste entre as personagens. É que, ao invés de investigar crimes, Arsène Lupin comete-os. No caso, não é o delito que atrai, mas a inteligência aliada ao engenho. Além disso, a figura de anti-herói sempre teve o seu quê de sedução, já que a identificação do leitor com a personagem principal já vai imbuída do desconcerto da inversão da ordem natural das coisas.
Arsène Lupin é uma personagem ímpar. Fugaz como o vento, só o seu nome existe. O seu aspeto muda consoante a necessidade, transforma-se noutro consoante as intenções. Os seus projetos são elaborados e mirabolantes, criam a dúvida e depois assumem a certeza. Foi, aliás, assim que a personagem deu corpo a uma fuga impossível, e é esse o seu modus operandi em geral.
Com a sua cartola e o seu monóculo, é sempre irreconhecível. É mestre dos disfarces, a cada dia é outro: “Arsène Lupin, o homem de mil disfarces: motorista, detetive, corretor de apostas, médico russo, toureiro espanhol, caixeiro-viajante, jovem robusto ou idoso decrépito” (p. 61). Assim, engana, manipula, desvia os olhares que o procuram. A ilusão ótica fica criada e, assente nela, vem a habilidade nos atos de alguém para quem “portões, muros e pontes levediças não existiam” (p. 21). A mestria dos disfarces culmina em fugas improváveis. Não voltando a ser o mesmo, não parece possível encontrá-lo: “Arsène Lupin era agora um de nós, qualquer um de nós” (p. 12). O objetivo, ao transformar-se permanentemente, é “evitar o perigo de uma personalidade que é sempre a mesma” (p. 16/17). Ele mesmo justifica a metamorfose na sua imagem:
“(…) se trabalhei 18 meses com o doutor Altier, no Hospital de Saint-Louis, não foi por amor ao trabalho. Considerei que aquele, que um dia teria a honra de chamar-se Arsène Lupin, deveria estar isento das leis ordinárias que regem a aparência e a identidade. Aparência? Isso pode ser modificado com facilidade. Por exemplo, uma injeção hipodérmica de parafina inchará a pele no ponto desejado. Ácido pirogálido transforma a pele na pele de um índio. Sumo de caledónia enfeita-nos com as mais belas erupções e tumores. Outra substância química afeta o crescimento da barba e do cabelo; outra muda o tom da voz. Acrescente a isso dois meses de dieta, na cela 24; exercícios repetidos mil vezes, para manter as feições retorcidas, e tombar a cabeça numa certa inclinação, e adaptar as costas e os ombros a uma postura curvada. Depois, cinco gotas de atropina nos olhos para os deixar exaustos e tresloucados, e o truque está feito.” (p. 54)
“Lupin”. Tudo o que é preciso para construir um golpe de mestre
Arsène Lupin transborda do charme não apenas de alguém que quer e chega lá, mas principalmente de quem o faz com astúcia – e não servindo-se dos mais fracos para erigir um império. Assim, finta e transtorna a burguesia, ao mesmo tempo que frustra as expectativas da polícia que nunca lhe consegue pôr a mão. E, quando o faz, não é líquido que Lupin não vá fugir de uma prisão intransponível. Assim, existe como uma força e como um mito, mas os seus planos passam pela manipulação do que é humano.
Com a recente adaptação à televisão, que terá a sua segunda parte disponível no próximo verão, o (anti-)herói francês chegou a mais casas, mostrando que as personagens sólidas não dependem do tempo ou do suporte. As editoras souberam cavalgar a onda e espera-se, assim, que o lugar onde Lupin nasceu chegue a muitas mãos e que os livros possam ser lidos tal como Assane Diop os leu.